segunda-feira, 30 de agosto de 2010

A mentira

Um dos grandes inconvenientes de Adolfo era mentir muito. As mentiras eram sempre diáfanas e até lhe davam uma auréola especial. Mas para se ser um bom mentiroso tem que se nascer já com essa vocação. É que não é mentiroso quem quer!
Adolfo tinha uma mentira fácil. Mas também se esquecia, com facilidade, das que dizia. Daí ter já sido apanhado várias vezes. Não era um mitómano. Apenas alguém que se servia dessa faceta para se livrar de um problema de ocasião.
Era assim que andava na Universidade há quatro anos e ainda não terminara o primeiro. Em casa todos estavam convencidos que ele era quase advogado. E, quando o Pai, esse sim do ofício, lhe disse que nessas férias conviria assegurar a ausência de um dos estagiários, ele sentiu um calafrio.
De imediato, acossado, respondeu que tal não seria possível, porque havia sido selecionado para frequentar um workshop de direito comunitário. Estranhando tanto empenhamento nos estudos em época estival, começou a fazer-lhe perguntas e não ficou convencido com as respostas...
Pressentindo que o seu golpe podia ser descoberto, disse que até havia uma carta da Faculdade a formalizar o dito convite e que ele a trouxera em mãos. A falsidade estava lançada. Agora havia que lhe dar forma. Para tal era necessário papel timbrado e forjar o texto adequado. Adolfo que era um sedutor lá conseguiu que uma das meninas da secretaria, à sucapa, lhe arranjasse, o material necessário.
Faltava arranjar o pior: um título e um conteúdo para o grupo de trabalho. Também isso ele empenhadamente fez, juntando vários temas que enconrou na net sobre o assunto.
E fê-lo bem, pensou. Só que quando o Pai viu a carta, disse-lhe que iria falar com o orientador do seminário para assistir a um dos temas... Adolfo nem pestanejou. Mas não percebeu se havia cometido alguma falha. O que sabia é que era necessário emendar a mão.
Deste modo, quando a data estava a aproximar-se, disse ao progenitor que, afinal, decidira optar pelo escritório.
"Calculo que sim. Mas não será para mais do que paquete, pois é para isso que dá o primeiro ano da Universidade e os teus diminutos conhecimentos.
A mentira, por norma, tem perna curta. A tua, essa, nem perna tem. Vais ficar no escritório, sim, nessa função. E estudar em horário laboral. À tua custa, claro. Porque o curso que devias ter feito, eu já to paguei. Agora é a tua vez. Da próxima, arranja alguém que saiba fazer um sumário sobre direito comunitário... ou, então, não te aventures naquilo que não dominas".
Consta que, desta vez, a lição lhe serviu. Pelo menos advoga em Lisboa!

Helena

domingo, 29 de agosto de 2010

No calor do teu corpo


Era quase manhã quando Natália voltou a casa. Estava felizmente cansada. Mal abriu a porta da entrada, começou a despir-se, deixando pelo caminho para o quarto as várias peças de roupa de que se ia desfazendo.
Hesitou entre o banho de imersão ou o duche. Optou pelo último. Meteu-se na banheira e deixou a água escorrer pelo corpo. O cheiro da lavanda de Rodrigo tornou-se percetível. Ficou assim, uns instantes parada.A água continuava a correr pelo corpo dela reavivando-lhe a sensação difusa de que ele ainda estivesse dentro dela. Não presente, mas numa fusão estranha de odores e de pulsões. Uma espécie de ter e de não ter.
Era uma sensação algo divina, tal o enorme bem estar. Nem sabia o que era melhor. Se o duche que tomava quando se preparava para o ter, se aquele que tomava depois de o ter tido. Sempre se apossara dela esta dúvida.
Amanhã cada um seguiria a sua vida. Mas durante aquele mês de ausências familiares intermitentes, eles não se cansavam um do outro. Todos os anos era assim. E já lá iam cinco.
É imoral o que faço, pensava, enquanto a água lhe escorria pelo corpo. Mas imoral para quem? Não estou a roubar nada a ninguém, nem pretendo fazê-lo. Então, onde está a imoralidade de nos concedermos, sempre, estes noites de folga das respectivas famílias, se estamos com elas, felizes, ao fim de semana?
Eram oito da manhã quando Rodrigo ligou a Márcia. Ninguém atendeu o telemóvel. Pensou que ainda estavam todos a dormir. Deixou mensagem "Querida vou agora sair para uma reunião chata. Só queria saber como estão todos. E dizer-te que te amo".
Fechou o aparelho, desligou o candeeiro e meteu-se entre os lençois para dormir!

Helena

sexta-feira, 27 de agosto de 2010

Um grupo coeso

Pedro ia de combóio para o Porto. Podia ter levado o carro, mas andava tão cansado que tinha tido medo de adormecer ao volante. Preferiu, por isso, entregar-se nas mãos do maquinista e ir vendo essa réstea de Portugal que se desenrolava, como um filme, através da sua janela.
Escolhera um lugar com mesa na presunção de que talvez lhe apetecesse abrir o portátil e escrever. Que nada! O que lhe apetecia era mesmo "desaproveitar" o tempo.
Dirigia-se ao encontro semestral dos "Borralhos", aquela mão cheia de amigos que vinha dos bancos do liceu. Já haviam desaparecido quatro. Dois na guerra do Ultramar e dois que tendo sido presos pela polícia política, haviam desaparecido sem se saber exactamente como. Por doença, diziam uns. Por maus tratos, diziam outros. Nunca soube a verdade. Nem a causa lhe intreressou muito, face à dor da perda de dois seres que muito estimava.
Um deles era fracote de saúde. Mas o outro não. Enfim, pensou, já cá não estão...
Ninguém percebia o que que ligava aquelas almas. Com efeito, um era um conhecido médico, outro canalizador estabelecido, outro engenheiro, outro alfaiate, outro professor e, finalmente, o último, escritor. De comum, tinham o terem nascido na Beira interior e lá feito primária e liceu. Uns, entraram logo na Universidade. Outros, começaram cedo a trabalhar.
A revolução de Abril quase conseguia separá-los. Mas, afinal, sobreviveram. Com efeito, quando foi da prisão dos Francisco e do Marco, a relação de amizade toldou-se, porque as ideologias que nunca os haviam incomodado, naquela altura, sobresaíram. Mas foi sol de pouca dura. Quando o primeiro morreu, as diferenças esfumaram-se. Só o desgosto contava.
Por isso, acabaram a prometer-se que daí em diante nada os afastaria e que, fosse qual fosse a prática política de cada um, tudo fariam para salvar o que havia sobrevido. Não foi fácil. A amizade sofreu rombos. Mas perdurou e nunca faltaram ao jantar semestral.
Era nisto que Pedro pensava, satisfeito, recordando as diferenças da forma de viver de cada um dos seus amigos. Desta volta o jantar era em casa do Francisco, o canalizador. Pedro já sentia as papilas gustativas a salivarem, só de pensar no que ele teria preparado. Sim, porque nestes jantares, a Maria não metia o bedelho. Ele é que preparava tudo.
O combóio chegou. Pedro tomou um táxi directo para casa do amigo. Já lá estava o Manuel agarrado ao copo de tinto. Aos poucos os outros foram chegando. Todos falavam ao mesmo tempo de tudo e de todos. Uma algazarra total!
"Passa o binho Xico, que a pinga está boa" era frase de mote. A galhofa durou a noite inteira. Quando Pedro chegou ao hotel ia alegre. Decerto que sim. Mas ia, sobretudo, feliz com o convívio, sempre igual, daquele grupo tão coeso...

Helena

O divórcio

A festa decorria numa quinta da família. Dificilmente se conceberia melhor aproveitamento de um espaço, já de si naturalmente muito bonito. Apesar do calor de Agosto, a frondosidade das árvores era tal que a aragem trazia alguma frescura.
Matilde e Raul tentavam apenas, no fundo, encobrir a sua enorme tristeza e compensar a filha pela guerra que sempre haviam movido contra aquele casamento. Mas tudo havia sido inútil e por mais que lhe mostrassem, preto no branco, os riscos que Carolina ia correr com o que sabiam acerca de Alexandre, nada a demoveu. A todos, afinal, acabou por impor a sua vontade, considerando de péssimo gosto as críticas e observções que os pais haviam tecido sobre o seu futuro marido. Ela tinha certezas e era isso que realmente contava.
Ali estavam os dois, já casados, a percorrer as mesas e a mostrar a sua felicidade. Os pais do noivo estavam manifestamente pouco à vontade, mas tentavam disfarçar. Apenas Matilde notava esta incomodidade e lhe dava uma muito pessoal interpretação.
"Eles sabem", pensava. Mas não têm coragem de fazer nada. Aliás, fazer o quê, nesta altura do campeonato, divagava a mãe da nubente.
Eram perto das quatro da madrugada quando os últimos convidados saíram. Matilde e Raul estavam desfeitos de cansaço e de preocupação. "Esperemos pelo fim da lua-de-mel, minha querida", disse Raul antes de pegar num sono profundo.
Nem uma notícia, nem um telefonema, nem uma mensagem. Nada. Os noivos estavam mudos e quedos. O fim da lua-de-mel aproximava-se quando, inesperadamente, a filha lhes apareceu em casa.
"Então não era só daqui a três dias que vocês voltavam? E o teu marido? Quando chegaram?".
Antes que as perguntas surgissem em catadupa, Carolina agarrou-se aos pais, e com bastante calma, disse-lhes: "Vocês tinham toda a razão. Ele prefere os homens. Vamo-nos divorciar!".

Helena

Uma certa forma de amor

“A liberdade de começar de novo é a maior de todas as liberdades. Se uma vida são muitas vidas, a da nossa Mãe começou de novo.
Ela é a mesma, só agarrou com as duas mãos a coragem que nunca lhe faltou. E meteu-se em brios e passou a prova do público. Descobriu que a vida também se escreve. Não tem ciência exacta sobre os sentimentos nem doutrina em forma sobre as emoções. Tem olhos para entender e ideias para explicar. Para nós não é novidade. A nossa Mãe escreve como sempre nos falou. São sermões laicos e dúvidas liberais. São interpretações de fé e códigos de carácter. São memórias ternas e contos de tristeza.
Ganhou-se a distância do que é pouco importante, escrevendo sobre o que está mais perto das pessoas. Nós só podemos recomendar a nossa Mãe com a autoridade dos conhecedores. E estar do lado da sua liberdade com a sinceridade dos admiradores” .
Este texto é, também, uma história de amor de dois filhos pela sua Mãe. Foi escrito por Miguel e Paulo Portas, faz hoje vinte anos, como prefácio ao primeiro dos doze livros que já tenho publicados.
Só espero que os meus netos, mais tarde, quando eu já aqui não estiver, saibam relembrar o que de mais perene eu, como exemplo, creio ter-lhes deixado. E que, relativamente aos seus Pais, possam manifestar tanto amor, como o que este texto revela!
Helena

quinta-feira, 26 de agosto de 2010

Os gémeos

Eram gémeos sim. Mas ninguém diria. Um era branco e o outro chocolate. Os pais, esses, eram brancos ambos.
Quando nasceram a família não queria acreditar e por mais que o médico explicasse que tal podia acontecer se, lá para trás, houvesse um parente de côr, o certo é que a dúvida se intalou entre Margarida e Duarte. Dúvida de que não falavam, pensando qualquer deles que se abordassem o assunto, isso iria pôr a nú uma desconfiança que só podia ser insana. Cada um pensava consigo próprio como iriam lidar com o assunto.
Margarida gostava de mandar fazer um exame de DNA mas não tinha coragem de o propôr. Duarte pensava o mesmo mas receava a reacção da mulher. Ambos serenaram um pouco quando a avó paterna disse ter descoberto que um trisavô, que nascera em África, era mulato e a mãe dele, ao que constava, seria negra.
Com o rolar do tempo foram esquecendo esta história. Até chegar o momento de ser necessário fazer um exame para saber qual deles poderia doar um rim ao pai, no caso de ser preciso fazer um transplante.
Colhidos os resultados, a surpresa foi total. Um deles era compatível e eram realmente gémeos. Mas o pai não era o paciente. Tragédia familiar a juntar à preocupação com a doença paterna.
Toda a anterior angústia e desconfiança veio, de súbito, ao de cima. Então se era assim, quem era o pai deles e que comportamento tinha tido Margarida? Ninguém queria, de facto, saber a verdade. Apenas queriam acusar a mãe de mau comportamento e bani-la da família. Ao contrário, os gémeos e, de certo modo, também Duarte, acreditavam na seriedade da mãe.
O transplante foi necessário e realizou-se. Mas Jaime, o dador côr de chocolate exigiu que fossem feitas provas à mãe. Surpresa maior: Margarida não era a mãe biológica dos dois rapazes. A família ia-se desfazendo. Aguentou-os o amor que tinham pelos que consideravam filhos e também a força que unia aquele quarteto.
Quando se encontrou bom, Duarte pôs o caso nas mãos de um avogado que, depois de um ano de investigações, chegou à conclusão de que houvera uma troca. Pôs-se, então, o problema de saber se valia apena tentar encontrar os pais biológicos. E os filhos biológicos.
Perante a questão, foram os gémeos a decidir: "Os nossos Pais são vocês, que nos criaram e deram amor. Para nós isso é suficiente. Quanto ao resto, só vocês podem decidir se querem ou não continuar a investigação"!

Helena

Uma questão de fé

Roberto crescera numa família dita católica, pese embora não ser grande a sua militância. Apesar disso, ou talvez por causa disso, foi educado num colégio religioso, tendo a qualidade do ensino sido a determinante da opção paterna.
Porém, seria aí que ele se iria descobrir. Um professor viria a ser determinante na vida do adolescente, ao ensinar-lhe filosofia, uma disciplina que, por norma, não exerce grande atracção sobre a maioria dos alunos. Contudo fopi através dela que o garoto descobriu o que entendeu ser a sua vocação: dedicar-se aos outros.
Quando em casa deu conhecimento de que queria cursar Teologia, a família reagiu mal, perguntado-lhe como é que ele iria ganhar a vida com tal formação. O jovem respondeu que não era um problema de carreira profissional, mas sim uma questão de vocação.
E, mau grado a reacção familiar, quando chegou a altura foi para o seminário. Foram anos muito duros porque apesar de Roberto saber que aquele era o caminho que queria seguir, não tinha o apoio daquilo o que se chama de fé.
Era uma luta quotidiana entre ele e Deus. O primeiro pedia insistentemente ao segundo que lhe concedesse essa graça. Mas o segundo parecia não ouvir as suas súplicas. E, por mais que o seu confessor e orientador espiritual lhe dissesse que nem todos possuíam essa capacidade de acreditar, e que a verdadeira determinante da vocação era a vontade, o certo é que Roberto sofria e teve mesmo momentos em que pensou desistir. Para ele era difícil de aceitar um padre com problemas de fé. Mas, por outro lado ele sabia, sentia que aquele era o destino que queria para si.
"Se amar não é um caminho de rosas, amar a Deus ainda é-o ainda menos, porque é mais difícil, mais avassalador. Um dia você vai perceber que a fé também pode ser feita de muitas dúvidas. Os desígnios divinos nem sempre são fáceis ou perceptíveis. Ama o próximo e talvez venhas a descobrir que, afinal, a fé está contigo sem tu o saberes".
Roberto segiu o seu caminho e em certa altura foi colocado numa paróquia. Aos poucos foi conhecendo o seu rebanho e acompanhando os seus problemas. Tentou sempre a persuasão e fez da tolerância a sua grande virtude. Muitos dos jovens que hoje frequentavam a sua Igreja tinham-se aproximado dela por essa via.
Uma tarde, a madre superiora de um convento onde prestava assistência religiosa, pediu-lhe que conversasse com uma das suas irmãs de comunidade. O padre Rogério foi. A madre recebeu-o e disse-lhe que a irmã Teresa estava com problemas de fé e precisava dos seus conselhos.
O padre ouviu-a e teve a impressão de se estar a ouvir a si próprio, há muito tempo atrás. Por isso resolveu contar-lhe a sua estória, a sua luta e quanto tudo o que passara lhe doera.
Terminou dizendo:" possivelmente, irmã Teresa, eu não terei desistido porque o Senhor sabia que, alguma vez, eu seria chamado e posto à prova. Essa ocasião acaba de chegar. Não desista. Um dia vai chegar a sua vez. É isso a vocação: ter dúvidas, mas continuar. Obrigada irmã. Acabou de me dar uma preciosa ajuda. A fé é, sobtretudo, ser fiel ao que queremos que seja o nosso destino. No meu caso, como possivelmente no seu, é e será, amar os outros e neles amar a Deus!"
Helena

quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Uma quarto de motel...

João estava agitado. Por várias vezes se aproximou do telefone. Por várias vezes olhou o telemóvel. Ele sabia a causa da inquietação. Por estranho que pareça num homem de 35 anos, era a primeira vez que enganava a mulher e entrava num motel. Já na recepção se atrapalhara. Depois, a Lúcia não aparecia e ele começava a duvidar que ela tivesse recebido a mensagem ou que a tivesse compreendido, uma vez que apenas escrevera 205. Claro que só podia ser o número do quarto. Que mais poderia ser?
E se ele telefonasse e lhe perguntasse? Mas se usasse a linha do motel ela não atenderia porque não reconhecia o número. E se ligasse do telemóvel? Não. Eles tinham combindo que nunca o fariam, por que os seus telefones eram conhecidos dos respectivos consortes, a Mariana e o Luís. Mas, de facto, para quem tem apenas duas horas, perder quase meia é frustante.
É castigo divino por nenhum deles merecer isto, pensou. Mas foi ela que sugeriu o encontro. Logo ela, que era a melhor amiga da Mariana. Claro que ele também gostava do Luís. Que fazer? Ele tinha-se apaixonado por Lúcia e era correspondido.
Mas era importante conhecerem-se fisicamente, porque uns beijos roubados em escadas ou corredores não são garantias de coisa alguma.
Já passavam três quartos de hora quando João resolveu arriscar e ligou para a recepção a saber se havia alguma mensagem para o seu quarto. Que não, que não havia, respondera o recepcionista. Tentou o telemóvel. Estava desligado.
Ao fim de uma hora resolveu voltar a vestir-se. Saíu e dirigiu-se ao local onde deveria pagar a conta. Mas de repente, ao fechar a porta do quarto, escassos passos andados, reconheceu a voz de Mariana e, segundos depois, a de Luís. Foi um impasse. Um silêncio mortal. O elevador chegou e eles tomaram-no. Mas nunca chegaram a falar sobre o assunto. Mesmo quando já estavam divorciados!
Helena

O galã

O rapaz era galã e bem falante. Tinha boa figura e conteúdo que dava para dois dias de conversa mais apurada. Sonhava fazer cinema. Mas também queria ser manequim.
Vivia em Campo de Ourique onde todos o conheciam. De vez em quando conseguia uns biscates fotográficos que iam dando para os anéis e as pulseiras de cabedal. Dizia-se comendador, desde que tinha namorado a filha de um, a Alzira. Mas o futuro sogro achou que o Rui - era assim que ele se chamava - não tinha cabedal suficiente para casr com a sua menina. Por isso, enxotou o jovem, conseguindo atraí-lo para as expressivas belezas naturais de uma das suas empregadas, a Manuela. A qual, cheia de visão, achou que bem vestido e com as arestas limadas, o rapaz até podia ter futuro.
Deste modo a Alzira ficou de mãos a abanar e a Manuela resolveu investir no potencial do jovem. Investimento caro, diga-se de passagem. Teve, mesmo, que contrair um empréstimo bancário e ainda hoje ninguém sabe que garantias a pequena terá oferecido.
O que é certo é que o Rui depois do personal adviser que a Manuela lhe arranjou, não parecia o mesmo. No bairro todos estavam siderados com a transformação.
"Parece um verdadeiro manequim", diziam. A voz estava aveludada, o timbre era correcto e bem posicionado, a fatiota apropriada à diversidade de situações. Enfim, o galã criara estilo.
E depois de a televisão o ter apanhado numa reportagem feita sobre o bairro, Rui Silveira passou a Rui d'Albuquerque Silveira.
O trabalho começou a surgir e, a certa altura, o nosso homem de Campo de Ourique passou à Estrela. Desta, ao bairro da Lapa, foi um pulo. Dado com muita inteligência...
Na Lapa, como convinha, até ganhou família. Pelo menos, um bom número de tias. Tias estas, que, como ele dizia, até tinham sobrinhas.
Quem já não conseguia acompanhar-lhe a pedalada foi a Manuela, que para além de pagar a pesada prestação do empréstimo bancário que havia contraído, deixara de merecer os favores do seu pupilo. O qual, agora, até parecia envergonhado quando a via.
Foi assim que a sua vida mudou. Uma das tias, solteira, a quem o Rui, de modo desinteressado, fazia muita companhia, resolveu levá-lo para o seu apartamento, de sete divisões, ali para os lados da Borges Carneiro. Agora sim, era o sobrinho que, ao dinheiro que ela tinha, dava estatuto mediático, tal o sucesso que soubera grangear.
E, quando a senhora morreu, foi ele o contemplado com a casa e os depósitos, que não eram poucos. Finalmente o galã merecera as dádivas da vida. Mandava dizer missas por alma da falecida e mantinha o jazigo impecável.
Manuela, claro, desaparecera. Curiosamente, o comendador, o seu ex futuro sogro, estava atento. Um dia, resolveu convidá-lo para jantar na sua casa. Alzira ficou logo alvoroçada com a perspectiva.
E quando veio o café e a moçoila estava ausente, o pai dela perguntou-lhe, de chofre, se continuava a gostar da filha. Ao que Rui respondeu, cheio de impância e também de alguma sabedoria: "Gostar, gosto. Mas sabe, caro Comendador, agora a vida é outra e eu sou um galã. Que é rico. Não leve a mal, mas a Alzira já não me serve... De momento, o que preciso é dum título, ou de um nome da nobreza, que é o que ainda me falta. Mas tenho tudo para o conseguir!"

Helena

Lágrima redentora


A fotografia, a sépia, já não estava em bom estado. Eram anos e anos junto do coração de Eduardo, passando de carteira para carteira, jamais esquecida ou, até, trocada. Nela se viam, perto da escola primária na planície alentejana, duas crianças de bibe e de mão dada. Estavam ligeiramente afastadas do restante grupo escolar que tinha no centro a professora.
Como tantas vezes acontecia quando lhe pegava, perguntava-se onde andaria Catarina, a quem então considerava de namorada e que como tal continuou até à sua vinda para Lisboa cursar Medicina.
Lembrava-se bem de como ambos, já adolescentes, haviam picado o dedo anelar e misturado os seus sangues, prometendo-se um ao outro. Compromisso mantido depois da primária e durante o liceu, nesses anos em que nunca se deixaram.
Mas, como nas telenovelas de hoje, a diferença entre os dois era grande. Ele filho do ferreiro da aldeia. Ela filha do advogado da terra. Ele partira para Lisboa a cumprir a ascensão social que os pais lhe haviam destinado. Catarina, por seu lado haveria de juntar à ambição paterna, as terras de um grande latifundiário da região. Tudo acontecera nos cinco anos em que terminara o curso.
Os pais, que esperavam o seu regresso à terra que o vira nascer, ficaram tristes quando souberam do convite que lhe havia sido dirigido para, nos Estados Unidos, fazer investigação. Mas aceitaram porque era acarreira do filho que estava em causa. Não os seus gostos pessoais.
Ela só mais tarde tivera conhecimento da decisão, já estava casada. Muitas vezes pensava que o destino não se escreve. Já está escrito. E que Eduardo não teria que ser seu, apesar da selada promessa que haviam feito.
Eduardo, embrenhado na vida profissional, não casara nem tivera filhos. Apenas ligações de ocasião sem qualquer importância que não fosse a conveniência da altura. Hoje tinha pena. Voltara por fim a Portugal onde fundara num hospital, um modelar centro de investigação.
Desde que a mãe morrera trouxera o pai para junto de si e rodeara-o de todo o conforto, como já, aliás, antes fizera aos dois quando vivera na América. Comprara-lhes uma das boas casa da região e de ferreiro o senhor Andrá passara a dono de uma loja de ferragens onde tinha quem trabalhasse para ele.
Catarina tivera dois rapazes. Um seguira as pegadas do pai. O outro tornara-se médico na capital, onde era respeitado e admirado. Também ele ia de quando em vez visitar a família. Gostava de lá estar. O Alentejo temperava a sua vida urbana e o stresse do bloco operatório.
Os anos foram passando. Eduardo nunca mais viu a antiga paixão. Diziam-lhe que não parecia a mesma e que a casa apalaçada onde vivia se tornara no centro cultural da região.
Uma tarde quando se preparava para sair, uma enfermeira chamou-o para uma urgência. Havia que tomar uma decisão e o médico cirurgião queria ouvi-lo. Voltou atrás, fardou-se e entrou na sala de operações. Na sua frente tinha uma série de chapas. Era preciso decidir se devia ou não intervir-se. Só nessa altura reparou na doente. Era Catarina.
Por uma fração de segundos sentiu o bater do seu próprio coração. Depois tomou-lhe as mãos da doente e disse"não vale a pena. A paciente acaba de falecer".
Já no seu gabinete, olhava a fotografia. O destino, com efeito, não se escreve.Uma profunda e silenciosa dor permitiu-lhe, finalmente, a lágrima redentora!

Helena

terça-feira, 24 de agosto de 2010

Uma carta de amor

Minha muito querida Ana

Passaram escassos meses sobre a tua partida e eu continuo a entrar em casa convencido que te encontro à minha espera. Ao fim da manhã pego vezes sem conta no telemóvel para te telefonar, como fazia todos os dias. Ao passar na florista do Chiado o impulso é comprar-te as orquídeas de que tanto gostavas. No cinema quantas vezes me não viro para a cadeira do lado para pegar nas tuas mãos ausentes, ou para te segredar aquilo que já não podes ouvir.
A saudade de ti, a saudade de nós, a saudade do que vivemos é uma dor tão insuportável que quase me pergunto como ainda consigo existir.
As noites que antes nos pareciam tão curtas para o muito que tinhamos para nos dar, são agora de uma imensidão sem fim. Tão longas que chego a perguntar-me como eram antes de te encontrar.
O teu cheiro está impregnado em cada objecto do nosso quarto, em cada livro do nosso escritório, em cada peça que decora as nossas salas. Tanta e tão forte é a tua presença que não suporto que a empregada ouse tocar qualquer coisa que tenha passado pelas tuas mãos.
Vivo de ti sem te ter, desejo-te sem te ver, toco a tua ausência e tento fazer dela uma presença.
Sei que isto é mais do que amor. Sei que isto é obsessão. Mas se é dela que eu vivo, como posso querer curar-me, se isso representa privar-me de ti? Que me importa que digam que é doença se é da doença que depende a minha saúde?
Tento viver sem a tua imagem, mas sinto-me como um naufrago à deriva. Tento esquecer-te mas tu estás cada vez mais presente no meu dia a dia. Tu és a minha dependência, a minha sofreguidão, o meu único amor. Enfim, Ana, tu és a minha vida e sem ti eu não existo!


Do teu António

A adúltera


Esta história é verídica e passou-se no escritório de advocacia de meu pai, no início da sua carreira profissional. Só bem mais tarde, quando meu irmão mais velho se licenciou em Direito, e ele já se tinha reformado, é que dela tomámos conhecimento. O caso passa-se no tempo da vigência da Concordata em que o casamento religioso tinha efeitos civis. E os nomes, claro, são fictícios.
Uma tarde a Lourdes, a eficiente secretária de meu pai avisa-o que o Dr. Francisco Pina - que havia telefonado a pedir uma consulta - estava na sala.
Mandado entrar e depois da conversa social tradicional entre pessoas educadas, meu Pai perguntou-lhe ao que vinha. A resposta foi imediata: "pretendo mover à minha mulher Celeste Pina uma acção de adultério".
Perante esta resposta, a temperança do advogado entrou em açção, explicando que essa era a via normalmente mais complicada, visto que era difícil de provar e que o desejável era, sempre, que o divórcio, a ter de existir, fosse o mais cordato possível.
"Eu tenho provas, senhor doutor. Tenho cartas e tenho fotografias. Estão aqui. Não pretendo ser tolerante, porque isso é o que sou há cerca de três anos. Agora o que quero é um divórcio litigioso. Por isso peço ao senhor doutor que chame aqui ao seu escritório a minha mulher e lhe dê conhecimento do que pretendo fazer. Deixo, assim, o caso nas suas mãos e assino já o que fôr preciso."
Meu Pai, que era um homem ponderado, disse-lhe que antes de tudo, gostaria de falar com a senhora D. Celeste. Depois, então, se estudaria a questão. O cliente concordou.
Convocada a senhora, esta compareceu, embora um pouco surpreendida pelo chamamento. Cheio de cautelas o Dr Sacadura Cabral explicou-lhe a situação e o motivo pelo qual a chamara.
A senhora não pareceu incomodada e, a sorrir, respondeu:" Senhor doutor só há aí um pequeno erro. Se sou, de facto, adúltera, é com o meu actual marido, o Dr. Francisco Pina".
Perante o "Como?" de meu Pai, a senhora explicou-se. Esclareceu, então, que este era o seu segundo matrimónio, apenas pelo civil, uma vez que o primeiro, com o Eng. António Vaz, fôra na Igreja.
" A pessoa em causa, melhor, o meu amante, a quem o senhor doutor se refere é o meu primeiro marido, com quem, de facto, há três anos retomei relações. Sendo católica, como sou, o meu verdadeiro marido é este. Perante Deus que é quem me interessa. Logo, se sou adútera, é com o segudo, do qual, aliás, pretendo divorciar-me para retomar o meu verdadeiro e único casamento...".
Seguiu-se um curto diálogo de cortesia e a promessa de uma nova conversa com o cliente, o que foi rapidamente cumprido. Depois do esclarecimento prestado por meu Pai, o Dr Francico estava estupefacto. É que, embora sabendo da sua existência, nunca havia visto o primeiro contemplado da sua senhora.
Meu Pai voltou a aconselhar-lhe o mútuo acordo e explicou-lhe que, se porventura apanhasse um juiz católico, os argumentos da ainda mulher podiam ter algum peso...
Com efeito a união havia de desfazer-se em termos amistosos e, passados alguns meses, meu Pai recebeu um cartão de agradecimento da senhora. Que, aliás, veio a saber, viveu mais vinte anos com aquele que Deus sancionara!

Helena

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Singular e plural


Um dia Laura, que já ia no terceiro divórcio, disse-me: “fui com qualquer dos meus três maridos uma pessoa diferente. Se, por um estranho acaso, eles se reunissem para falar de mim, de certo chegariam à conclusão de que não estavam a referir-se à mesma mulher”.
Nunca mais esqueci esta conversa. Ela voltou agora à minha memória porque a minha amiga acaba de me comunicar que está a pensar voltar a casar.
O que é que, afinal, se passa, perguntei-lhe?Não te chegam três insucessos? Então ela explicou-me que no primeiro a educação estrita que tivera, não lhe tinha permitido conhecer bem o futuro marido. Fora, assim, uma noiva casta, inexperiente e temerosa. Os filhos, seguidos, também não haviam ajudado muito. Ao contrário, a atenção que neles concentrara, havia levado a que descurasse o marido. Que acabou por se ir com quem não tinha crianças para cuidar.
No segundo tivera toda a liberdade. E usara-a. Mas, uma vez mais, os filhos perturbaram a relação. Com efeito, sempre que podia, o marido trazia para casa os dois rebentos que já tinha de um anterior matrimónio. Enquanto Laura tentava conciliar tudo, pondo o marido em primeiro lugar, as suas crianças, essas doces criaturas, decidiram ir viver com o pai, argumentando que a mãe não lhes dava atenção. Para compensar os enteados resolveram seguir-lhes as pegadas. Houve assim uma troca. Sairam dois e entraram outros tantos. Resultado: novo divórcio e novas mágoas. Mas a heroína recuperou os filhos.
Ao terceiro resolveu que não abdicaria de mais nada. Nem de filhos nem dela própria. E ele aceitou. Aceitou tanto e tão bem que acabou por perder o interesse e a desmotivar. De tal forma que seria ela a pedir o divórcio.
Agora os filhos têm a sua vida e Laura está, finalmente, preparada para partilhar a sua existência sem constrangimentos e sem deixar de ser ela própria. Pelo menos é o que ela pensa.
"Acho que agora já posso ser uma mulher felizmente casada", afirma com um sorriso nos lábios!

Helena

A herança

Ele já não era novo, mas tinha um escritório de advocacia. Constava que tinha dinheiro. Elsa era jovem mas não tinha onde cair morta. Fazia a limpesa do seu gabinete. Foi assim que se encontraram.
Quando o Dr. Joaquim lhe propôs casamento, prometeu-lhe fazê-la sua herdeira. O termo, mágico para quem não tem nada de seu, chegou-lhe. Nem tratou de saber quanto valia o património, apesar das amigas insistirem para que o fizesse.
A casa, dizia-lhe o noivo, era sua propriedade. Assim como o recheio. O carro também era seu e a reforma bastante boa. Tudo, por sua morte, ficaria para ela.
Foram mesmo ao cartório para ele fazer testamento a favor dela. Tudo como manda o figurino da gente séria. As amigas, desconfiadas com a sorte, aconselhavam-na a ter cautela.
"Não cases. Vai viver com ele, porque ao fim de dois anos tens quase os mesmos direitos" diziam as amigas.
Mas Elsa queria ser mulher de um senhor doutor. Achava que era essa a sua ambição e dava-lhes conta dela.
" Tem juízo, rapariga. Vais dar-lhe carne fresca e não sabes se a mobília tem caruncho. Vai com cautela. Deixa-te de grandezas", avisavam as mais batidas pela vida. Mas nada demoveu Elsa do sonho de ser a mulher do senhor doutor.
Chegou o dia. O casamento pelo civil decorreu em casa do noivo. E foi quando ela soube que o futuro marido, afinal, era brasileiro. Mas ele acalmou-a dizendo que apenas nascera no Brasil e viera para Portugal com meses de vida.
De facto, Elsa estranhara não ver família, mas percebeu que vir a Portugal era caro. E a cerimónia fez-se.
Passaram uns anos em que a vida foi difícil. Apesar de ser a mulher do senhor doutor, continou nas limpesas. E era o dinheiro que ganhava que ia aguentando a casa.
Um dia o marido adoeceu. Durou pouco. Afinal padecia de uma doença maligna há já alguns anos. Ela é que não sabia.
Quando foi o enterro Elsa descobriu a verdade. O casamento fora uma farsa. O Dr. Joaquim tinha mulher e filho no Brasil. Que vieram a Portugal reclamar a herança. A tal que ela havia de receber. Invocou o testamento. Mas este havia sido anulado pouco depois de casarem.
Valeu-lhe a dita união de facto, que ela recusara, para manter a casa que, afinal, era alugada!

Helena

Quem com ferro mata...

Conheceram-se na Faculdade. Ela distinguia-se das colegas pela forma como se arranjava. Os últimos modelos, os cabelos e as mãos de quem frequenta regularmente o cabeleireiro. Marta parecia mais uma docente do que uma discente.
As más línguas diziam que tinha um amante, velho, que a sustentava. Verdade ou não, o certo é que ela deu o melhor aproveitamento a esse apoio, ao decidir fazer estudos superiores. Muitas teriam ficado pelo lado fácil de tal tipo de relações.
Quando encontrou Artur, o caso complicou-se, porque ambos se apaixonaram. Ele tornou-se o centro do seu universo, pese embora ela saber que o jovem tinha fama de mulherengo. Acabaram o curso e casaram. Diplomata de profissão passaram muitos anos no estrangeiro. Nasceram duas filhas. Durante algum tempo a sua fidelidade devia ter sido real.
Mas ele não era de índole fiel. Um dia prevaricou. E continuou. Achando, no fundo que, à semelhança do que nuitos outros homens faziam, ele podia manter duas vidas paralelas. Só que os tempos haviam mudado e com eles a cabeça das mulheres.
Marta sabia que se havia de vingar. Mas só quando ela achasse mais conveniente. A hora chegou através de um simples bilhete sem data nem assinatura no qual lhe dava conta de que partira levando consigo as filhas e o conteúdo da conta bancária. No fundo, acrescentava, deixava-o exactamente como o encontrara. Sem filhos e sem dinheiro.

Helena

Um homem frágil

Bernardo tinha tudo para ser feliz. Saúde, fortuna pessoal, uma profissão bem sucedida, uma família da qual se podia orgulhar, trinta anos, um belo rosto e um corpo bem trabalhado. Casara relativamente cedo. Ao que, na altura supôs, por amor. A este ter-se-á subrepticiamente juntado o apoio das duas famílias que, deste modo, viam nos herdeiros a junção de dois patrimónios.
O casamento foi tudo o se pode imaginar de melhor, quando se juntam duas famílias da chamada alta classe. A lua de mel, idem. Mas quando esta acabou, a adaptação à vida conjugal não foi fácil. O silêncio ia-se impondo entre ambos, sem que se dessem conta das razões por que tal acontecia.
Qualquer deles estava insatisfeito. Mas Rita decidira que seria algo passageiro, que um filho acabaria por alterar. E esse filho veio. Era uma rapariga.
Mas a criança só veio acentuar o mal estar. Agora falavam. Mas apenas dela. Tudo o resto mantinha-se na mesma. Com as consequências inevitáveis na vida sexual, que não sendo excepcional, era agradável. Podia, mesmo, dizer-se que talvez fosse ela que manteve unido o casal.
O marido não ousava abordar o problema porque, no fundo, não sabia onde ele residia. Só sabia que não estava feliz, que Rita não era a mulher que ele desejava. Mas não tinha alternativa que lhe permitisse ver de onde vinha o falhanço.
Numa tarde, antes de ir para casa, resolveu ir tomar um whisky no bar de um hotel. Apenas para retardar a hora do retorno ao lar. Na sala, numa semi penunbra, o pianista tocava músicas dos anos sessenta.
Estavam três mesas ocupadas. Em duas um grupo de homens conversava sobre negócios. Ou pelo menos era isso que parecia. Na terceira uma mulher tomava chá. Teria, talvez, uns quarenta e cinco anos bem conservados. O olhar era vago, mas o aspecto tremendamente cuidado.
Bernardo decidiu sentar-se numa mesa discreta e relaxar. Mas quando o fez, teve tão pouco jeito que tropeçou e se estatelou - é o termo - aos pés da dita senhora. O chá, esse, derramou-se sobre os dois. Entre desculpas e gaguejos, o nosso homem só queria saber como podia ressarci-la do desastre que provocara. Ela, plácida, respondeu-lhe " se ficar calado já me sinto recompensada".
Bernardo era um homem frágil e esta resposta gelou-o. Se houvesse um buraco no chão ele ter-se-ia metido nele. Mas não havia. Por isso, estoicamente pediu a sua bebida. Que, de facto, o relaxou.
Uma hora passada, a senhora levantou-se e nem sequer para ele olhou. Segundos depois o nosso protagonista tentava saber junto do barman quem ela era. Tratava-se de uma cliente habitual do hotel e, ao que constava, era empresária, e ficava sempre no mesmo quarto.
Bernardo hesitou. Mas um qualquer grito interior de orgulho ferido fê-lo deslocar-se ao quarto em causa. Sem que soubesse para quê. Hesitante bateu à porta, que se abriu.
Quando ia falar, a interlocutora pondo-lhe os dedos em cima da boca, disse apenas "estava à sua espera"!

Helena


Um professor


Era um homem simples que conheci por ser tio de uma colega de liceu. Ensinava no então Instituto Superior de Ciência Económicas e Financeiras, mais conhecido por ISCEF.
À época eu tinha quinze anos e o meu terror era a Matemática. Boa aluna em tudo o resto, andava pelo suficiente nesta matéria. Aliás, escolhera ir para economia, por haver no curso duas áreas que não exigiam saberes profundos de aritmética.
Mas o destino tece armadilhas e quando estava a um ano da entrada no curso superior surge , inesperadamente, a sua reforma. E esta, por ironia, tornava obrigatórias as Matemáticas e os Cálculos. Pensei desistir. Mas a minha mãe não mo permitiu. Felizmente!
Foi então que me lembrei, a seu conselho, de ir falar com o tal tio da minha colega, o Dr Laginha, que era assistente do Prof. Bento Gonçalves, um dos mais temidos na Faculdade. Do diálogo saíu o vaticínio que determinaria a minha vida profissional.
O que ele me disse foi simples: "tiveste um mau ensino destas matérias. Mas se estiveres disposta a abdicar das férias e a estudar bem, percebendo, o que já sabes acredito que tirarás o curso sem dificuldades".
Foi o que fiz. Durante três meses aquele santo homem deu-me diariamente lições pelas quais me não cobrou um cêntimo. E eu comecei, de facto, aos poucos, a perceber para que servia tudo aquilo que apenas decorara.
Posso dizer que foi um mundo novo que se me abriu. De tal modo importante, que fui a melhor aluna nas cadeiras que exigiam preparação naquelas matérias. Mais, a economia matemática é não só, hoje, o meu domínio de eleição, como por gosto fui, durante anos, professora de Álgebra e Cálculo nos estabelecimentos universitários onde leccionei.
Moral da história. O medo dos números está quase sempre ligado à qualidade de quem ensina e à falta de compreensão daquilo para que serve o que nos é ensinado. Ora os números, ou melhor, o raciocínio matemático, servem para quase tudo o que constitui o nosso quotidiano. Sem que tenhamos consciencia disso, ele está na base de uma série de opções que tomamos.
Foi, afinal, o que aquele homem simples me ensinou. Estar-lhe-ei eternamente grata por isso!

Helena


sábado, 21 de agosto de 2010

Uma noite, uma manhã


Antónia acordava lentamente, na penumbra do quarto de hotel que, para ela se tornara, já, uma segunda casa. Era o número 25 desde os primórdios do encontro que viria mudar a sua vida.
Abriu ligeiramente os olhos e procurou o corpo que deveria estar a seu lado. Aquele corpo tão familiar, tão próximo e afinal tão pouco dela. Apenas a almofada amachucada denunciava que outra cabeça pudesse ter estado ali deitada. E, talvez, o remoínho dos lençóis...
Ao lado estava, sim, um bilhete. Como muitas vezes acontecia, quando José tinha de sair mais cedo e precisava de lhe deixar dito que a amava. No fundo, nestes oito anos de relação, era tudo que ela tinha. Umas noites, algumas manhãs, uns bilhetes e, nos melhores tempos, uma viagem por ano.
Era nisto que ela pensava mais ultimamente. Talvez porque José já nem sequer lhe mentia a prometer o que nunca tivera intenção de cumprir: casar com ela! Já nem sequer sentia necessidade disso, consciente que estava, de que ela já não esperava isso.
Parecia assim que aquilo que os ligava era cada vez mais fraco. Uma noite de sexo já não prende ninguém, quanto mais oito anos de de algumas noites de sexo sempre com o mesmo homem. Que não sendo seu, lhe exigia contrapartidas que o próprio lhe não dava.
Mas então porque é que eu mantenho isto, perguntava-se Antónia? Porquê? E, como sempre, a mesma estúpida resposta:por medo. Medo de não ter ninguém, medo de não ser amada, medo de encarar de frente a solidão. Como se não fosse esta a sua única realidade.
Esticada na cama, debatia-se entre a mágoa e a raiva. E mais uma vez prometia a si própria que aquela seria a última noite, a última manhã.
De repente lembrou-se do bilhete de amor que ele lhe deixara, como sempre, dobrado na almofada. Tinha apenas uma palavra, "adeus"!

Helena

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Seis anos de vida


Marcela ainda olhou para trás e viu-o caminhar. O passo não era tão regular como antes, o tronco parecia menos direito, mas a cabeça, essa continuava com o mesmo porte de antigamente. Com mais dignidade até porque os cabelos brancos davam-lhe uma auréola diferente. Foi tudo há tantos anos, pensou.
Era o seu primeiro dia na Universidade. Finalmente tinha conseguido vencer a oposição do pai e da maioria da família. Mas tinha o apoio, sempre incondicional, da mãe que via na filha a realização de um sonho que ela própria não conseguira concretizar. O de ser médica. O de ajudar os outros ajudando-se a si própria na através da sua vocação.
Foi numa das primeiras aulas que o conhecera. Quase cegara de encanto, a ouvi-lo. Lindo de morrer, mas sobretudo um professor de excelência. Tudo era simples através das suas palavras. Foi numa dessas palestras que se apercebeu que estava apaixonada. Pelo mestre. Mas também pelo homem. E a decisão surgiu de imediato. Ela iria ser a sua melhor aluna, a sua mais dilecta ouvinte, a sua mais preciosa colaboradora. Não sabia como tudo isto se iria concretizar. Mas tinha a certeza de que não falharia. Para tanto fez um levantamento exaustivo de quem era o seu amor. Desde a família, aos gostos pessoais e interesses científicos, tudo foi passado a pente fino. Nada ficou de fora!
No primeiro trabalho escolar proposto, escolheu exactamente aquele que melhor se enquadrava no apuramento que fizera das suas preferências. Foram horas e horas de trabalho. Mas que haviam de merecer não só o elogio, mas a discussão pública, perante a turma do tema por si analisado .
Marcela sentiu-se quase como uma "igual". Não era, claro. Mas ele, Afonso, tinha dado por ela! E esse facto foi determinante. Seguiram-se novos trabalhos e novas oportunidades de um contacto mais próximo. Agora, era ele quem solicitava a sua colaboração para aquilo que publicava.
O ano escolar acabou. Marcela teve, como seria de esperar a mais alta classificação. No fim do exame o professor disse-lhe que ela havia sido a sua "descoberta do ano". E obteve resposta pronta. Sem pensar, a aluna retorquiu " o professor também". Seguiram-se uns segundos de silêncio. Depois, um convite para jantar. Algo parecido com uma comemoração.
A este seguiram-se outros. E aos outros, seguiram-se encontros vários. Mais íntimos.
A aproximação profissional também se consolidou. Quando a licenciatura chegou os convites foram muitos. Marcela continuava apaixonada, mas sabia que a sua vida familiar, se algum dia existisse, não passaria por aquele homem. O tempo tornara-a sábia e ensinara-lhe que Afonso não era para casar...
Assim, quando veio o convite para leccionar nos Estados Unidos, não hesitou. Aceitou, sabendo que, de uma só vez, ia resolver dois problemas. O profissional e o pessoal.
Os anos passaram. A América passou a ser a sua pátria e Portugal a sua origem. Casou e teve filhos. Divorciou-se. Duas vezes.
Hoje era uma profissional de renome. Viera a Portugal fazer uma conferência e resolvera ficar uns dias na capital. À saída do hotel resolvera descer a Avenida da Liberdade. A manhã estava soberba. Parou numa pastelaria para beber um café. Aquilo de que verdadeiramente sentia saudades... Ao lado, no balcão estava um homem que a olhou fixamente. Mas nem um sorriso esboçou.
Marcela teve uma sensação estranha. Aquele olhar tinha algo de familiar. Quando o indivíduo saíu, soube. Ainda esteve para o tentar apanhar. Mas ficou parada no passeio, a vê-lo afastar-se. Estavam ali, naquele homem, corporizados seis anos da sua vida. Seis anos...
Helena

segunda-feira, 16 de agosto de 2010

O estado civil...

Odete sabia o que era ser solteira. E também o que fora ser casada. Agora estava a aprender como era ser divorciada... e ainda como era ser viúva.
Nenhum daqueles estados civis por que já passara a tornaram muito feliz. Do primeiro recordava o mau feitio do pai e o medo da mãe. Do segundo as lembranças não eram igualmente muito boas. Nunca amara o marido e apenas o aceitara para fugir ao ambiente paterno. Mas o José, todo mesuras enquanto namorado, depois de casado mais se ia parecendo com o aquele que lhe dera vida. Enfim, até aos trinta anos, Odete vivera aprisionada...
Mas um dia, uma sua prima emigrante em França, veio de férias a Portugal e virara-lhe a cabeça, como a família dizia. Odete começou a perceber que nem todos viviam como ela e que se tivesse coragem podia mudar o deu destino.
Aguentou mais seis meses. Poupou tudo o que podia. E, numa bela madrugada, sem que ninguém desse por isso, abalou na carreira para o Porto. Uma vez na capital, chegar ao aeroporto foi o seu destino.
Não se perdeu nem se enganou. Mas, de facto, só no avião se sentiu segura.
A prima e trabalho esperavam-na em Paris. Todos a procuraram e quando finalmente a encontraram, ela só quis o divórcio. A distância e o consulado ajudaram. Um ano após a saída da aldeia, Odete era uma mulher divorciada. Livre. Até para se casar de novo... Pensava ela, porque a sentença não transitara ainda em julgado, e ela ignorava o que isso significava.
Poucos dias depois de obter a liberdade, chegaram-lhe notícias do país. O marido que já deixara de o ser, morrera num acidente. Ou seja, sem o saber, Odete transformara-se, subitamente, numa pessoa cujo estado civil era confuso. Com efeito, para efeitos legais não estava ainda divorciada, mas também de viúva não podia ser chamada!

Helena


segunda-feira, 9 de agosto de 2010

Encantos virtuais


A internet era a sua paixão. E, diga-se de passagem, a sua única companhia. Luisa nem sabia explicar como tudo tinha começado. De facto, não era muito dotada para as tecnologias mas as amigas começaram a estimulá-la, a dizer-lhe que podia fazer amigos na rede, que os perigos eram só para quem se arriscava.
Primeiro foi o portátil. Habituou-se de tal modo a ele, que o levava para todo o lado. Depois, foram as redes sociais. Claro que participava de todas as que conhecia ou ia conhecendo. A seguir foi a blogosfera e todos os importantes pensadores do país que se exprimiam daquele modo. Luisa começava até a ser conhecida num restrito número de amigos virtuais. É sempre assim, diziam-lhe todos.
Mas um dia Luisa arriscou-se. E foi espreitar alguns amigos dos seus virtuais amigos. Começou justamente assim o seu conhecimento com Osvaldo. Ele até já podia ter fãs. Começaram na rede e passaram ao correio electrónico. Deste, passaram ao telefone que para ele era gratuito. Coisas de pacotes promocionais, dizia. Eram conversas em tempo real. Ele engenheiro ela educadora infantil.
Do telefone ao encontro demorou algum tempo. Talvez quatro meses, que fizeram crescer nela uma esperança. A de, finalmente, encontrar a alma gémea.
O encontro não a desiludiu. Osvaldo era tal e qual a foto que apostara na sua página. O envolvimento foi-se tornando cada vez mais íntimo e Osvaldo já se mexia na casa dela como se fosse residente. Luisa dera-lhe a chave para ele a surpreender sempre que quisesse.
Mas nas férias foi difícil compatibilizar datas. Luisa ia para Paris a 26 de Agosto e Osvaldo chegaria dois dias depois.
O dia 28 de Agosto passou e Osvaldo não chegou. Nem atendia o telefone. Até a página da rede havia sido fechada. Luisa entrou em angústia e telefonou para uma vizinha. Foi quando esta lhe deu os parabéns pela nova casa...
Quando, a 30 de Agosto, Luísa chegou a Liboa tinha, na verdade, uma nova casa. Vazia!

Helena

segunda-feira, 2 de agosto de 2010

O Bígamo

Sempre teve duas mulheres. Nem alguma vez, se pensou a viver de modo diferente. Filhos é que não. Esses, aliás, essas - porque de duas raparigas se tratava - eram nascidas da "legítima", com quem se manteve casado mais de 25 anos.
Mas, um dia - há sempre um destes terríveis dias -, a segunda fartou-se e encostou-o contra a parede. Mais concretamente, ou ele se casava com ela, ou o caso - que tinha quase tantos anos como o próprio matrimónio - morria de morte natural.
Encurralado, António foi obrigado a escolher. E escolheu separar-se da primeira, tendo já em vista quem iria ocupar o lugar da segunda.
Assim iniciou todas as demarches que o caso impunha. Aldina só lhe fez uma exigência. A de que a morada de família, propriedade de ambos, fosse transferida para o nome das duas filhas. O assunto nem sequer mereceu discussão. Mas António não deixou de ficar surpreendido com a facilidade com que a mulher aceitou os novos factos. Até, talvez, tenha ficado mesmo incomodado. Que diacho, tanta naturalidade, era chocante.
Outro dia - nem seis meses sobre o divórcio haviam passado - o nosso homem recebe um telefonema da ex- mulher a pedir-lhe que vá falar com ela. Ficou preocupado porque tal nunca, até aí, acontecera.
Chegado o dia lá se juntaram num café. Aldina começou e o diálogo foi assim:
- Depois de mais de 25 anos de vida em comum, entendo que devo ser eu a dar-te a notícia.
- Que notícia? indagou António
- A do meu casamento.
- Do teu casamento? Mas ainda nem sequer passaram os nove messes que a lei vos exige...
- Não faz mal, porque me vou submeter a um exame no Instituto de Medicina Legal que atestará que não estou grávida e, assim, já posso casar mal prefaça seis meses de separação.
- Mas porquê tanta pressa?
- Bom, é sobre isso que te desejo falar. É que quero que saibas por mim e não por qualquer outra pessoa que, há dez anos, mantenho uma ligação com o homem com quem, agora, me vou casar.
- O quê?!
- Apenas isso que ouviste.
- Então foste adúltera durante o nosso casamento?
- De certo modo sim. Tanto como tu, aliás. Mas agora, pelo menos, podemos ambos corrigir a situação!

Helena