terça-feira, 17 de abril de 2012

Sinais


Andava arredado, como se quisesse fugir dela. Chegava tarde, levantava-se com as galinhas e às refeições mantinha-se mudo.
Ela não percebia e desfazia-se em ternuras e atenções, admitindo que seria culpa sua. De quê, não sabia. Nem sequer admitia a existência de outra mulher. Pensava nos dois filhos, tentava comunicar, mas a barreira era intransponível. Marcelo não estava pura e simplesmente interessado em falar sobre o assunto.
O ambiente tornara-se insustentável e, no limite, Elsa decidiu fazer as malas, pegar nos miúdos e sair. Sem dizer para onde ia, aproveitando as férias escolares de Verão. Rumou ao Norte, arranjou casa e trabalho. Até que sentiu ser chegada a altura de procurar um advogado para se divorciar.
Foi quando, finalmente, percebeu as razões do marido. Nada tinha contra ela, nem se queixava de coisa alguma. Ela apenas pecara por omissão, por não ser a pessoa que ele esperava que ela fosse. Fora ele que se enganara sobre a pessoa com quem casara e, por isso, sentia goradas as suas expectativas. E não queria uma vida sem retorno para si.
Há, de facto, vidas assim, em que um nunca sabe ler os sinais do outro que, por sua vez, espera sempre não ser ele próprio a ter de fazer o corte. Para isso basta-lhe ir ferindo lentamente...

Helena

segunda-feira, 16 de abril de 2012

Uma chávena de café...

Ele esperava-a no quarto do motel. Como todas as quintas feiras dos cinco últimos anos. Despira apenas o casaco e atirara-se para cima da cama.
Com efeito, talvez nem fosse preciso despir mais nada, porque ele já tinha o discurso todo preparado. Mal ela chegasse teria que lhe refrear os abraços e os beijos para conseguir espaço de diálogo. Bom, diálogo não, pensou. Ele apenas queria ter um monólogo... mas não ia ser fácil!
O tempo foi correndo, o discurso de Miguel foi-se aprimorando e os gins com que se foi animando iam-se acumulando e o nosso protagonista talvez por efeito da espera tranquila, talvez por efeito da bebida, deu-se conta de que haviam passado duas horas e de Marta ... nem sinal.
Um pouco confuso ligou para a recepção e pediu um café duplo. Minutos decorridos um discreto bater de porta. Enfim, pensou!
Ao abrir depara-se-lhe um empregado com uma bandeja na qual vinha uma chávena com o líquido fumegante e um envelope, que acabara de ser entregue.
Miguel pousou tudo na mesa e abriu o sobrescrito. Duas linhas apenas continha o cartão. "Foi bom quase sempre. Deixou de o ser há um ano. Caso dentro de um mês".
O café esperava por ele. O discurso que havia preparado, também. Afinal eram mesmo as únicas coisas que tinha à espera... além da mulher e dos dois filhos lá em casa!

Helena

segunda-feira, 2 de abril de 2012

A intimidade dos pais

Nunca conhecemos bem os nossos pais, pensava Deolinda depois de ter arrumado a última gaveta dos objectos pessoais daquele que lhe dera a vida. No meio da sua tristeza pela perda que acabara de sofrer, também sentia um misto de pasmo e de irritação pelo que, sem querer, lhe tinha vindo parar às mãos.

Os pais haviam-se divorciado quando eles eram pequenos. Deolinda não tinha qualquer lembrança deles enquanto casal. O irmão, Marcelo, ao contrário lembrava-se bem e havia sofrido muito com a separação paterna. Ele ficara com o pai e a irmã ficara com a mãe. Mais tarde, quando a mãe se voltou a casar e teve que ir com o marido para o estrangeiro, haviam de voltar a juntar-se na casa paterna. De facto, por causa dos estudos, ambos ficaram, nessa altura, com o pai.

Marcelo, inteligentemente, delegara na irmã tudo o que dizia respeito à divisão dos bens paternos, seguro que estava, de que Deolinda jamais o enganaria. E também se libertava, está de ver, de uma série de trabalhos que a morte dos próximos sempre acaba por trazer àqueles que ficam vivos.

Tudo correra bem na constituição dos lotes para dividir.

O problema surgiu quando foi necessário chegar às coisas que o progenitor guardara, sem se perceber bem porquê, e que respeitavam à sua intimidade. Acontece com frequência àqueles que parece que nunca estão preparados para morrer.

Naquela gaveta havia de tudo. Postais, fotos, cartas, pautas musicais, bilhetes de espectáculos, um caracol de cabelo, enfim, um mundo que Deolinda nem sequer julga pudesse caber na imagem contida que tinha do pai. E, num grupo aparte, encontravam-se três embrulhos. Um constituído por cartas que a mãe escrevera ao marido; outro por cartas que a avó enviara ao filho e dois cadernos com histórias eróticas, cuja letra não deixava qualquer dúvida sobre o autor das mesmas. Finalmente, um diário com fechadura.

Deolinda nem queria acreditar que aquele pai severo, exigente e até seco, pudesse ser o autor daquilo que estava ali à sua vista. Hesitou em compartilhar com Marcelo o que descobrira. Depois decidiu que não o faria. Iria queimar tudo.

Mas não resistiu a ler uma carta escrita pela mãe. Não conseguiu acabá-la. Era demasiado íntima. Voltou a dar um laço na fita que desatara e resolveu que aquelas iriam para as mãos de quem as escrevera.

Faria a entrega no dia seguinte, pensou. Mas dormiu mal nessa noite. E, ao fim da manhã, dirigiu-se à casa materna e entregou à autora as ditas epístolas.

- Leste alguma?

- Li uma mãe. Mas nem sequer a acabei.

- Fizeste mal Deolinda. A intimidade dos pais só a eles diz respeito!

- Tem razão mãe.

- Então faz o que o teu Pai devia ter feito. Desfaz-te, em vida, do passado que morreu!

Helena