terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Amor amargo


Nunca se teriam encontrado se não fosse o trabalho. Ele vindo de África, ela indo a África ver a família. Um, oriundo de Angola. Outra, visitando os seus em Moçambique.
Ambos juristas, de gerações bem diferentes, mas da mesma Universidade. Ele provindo de gente humilde. Ela filha de uma média burguesia alta.
Quis a sorte, corporizada na revolução dos cravos, que o destino de ambos se cruzasse na casa em que os dois serviam.
Joana já lá estava. Frederico veio depois, na avalanche de retornados que o país tão bem recebeu. A sua entrada causou logo algum mau estar, porque o salário que iria perceber era superior ao dos restantes colegas. Mas ele não se assustou, aguentou o embate e acabou por ser aceite por quase todos que lhe haviam de, com o tempo, reconhecer competência.
Ambos casados, apaixonaram-se, por mor sabe-se lá bem de quê, visto que nada os aproximava. Ele encantou-se com a maturidade de uma mulher dez anos mais velha. Ela rendeu-se à ternura de um homem mais novo e ao fascínio que sabia exercer sobre ele. Fascínio que nunca, até hoje, acabou.
Depois do divórcio de cada um, casaram. Pareciam felizes e foram-no. Até que Gina apareceu e a tormenta começou.
Frederico gostaria de manter as duas mulheres. Gostava de ambas. Mas Joana não aguentou. E a história repetiu-se com mais outra separação e outro casamento.
Durante anos Joana sofreu, mas não se queixou. Frederico falava-lhe de quando em vez, mas ela não o atendia. E assim decorreram cinco anos.
Um dia o acaso juntou-os numa reunião de trabalho. Joana estava curada. Por isso até achou graça à corte do ex marido.
Aceitou-a e fez tudo para a manter. Foram amantes durante dois anos. Joana tinha a cabeça fria, mas o corpo quente. E sentia que agora estava em condições de medir forças com Gina, a concorrente.
Por fim, Frederico percebeu que ela era a mulher da vida dele e pediu-lhe para voltar. E voltou, seguro do amor dela.
Só que, no retorno a casa, não encontrou Joana. Mas encontrou uma carta com poucas palavras que lhe era dirigida. Apenas uma frase "foi bom, não foi? Mas acabou."

Helena

sábado, 28 de janeiro de 2012

O retrato de um homem sério


Deixem que me apresente. Sou um homem letrado que, ao longo da vida andou como os carroceis: umas vezes em baixo, outras lá em cima. Como todo o homem, tenho uma história. Irrisória, mas minha.
De profissão sou ladrão. Mas não de pechisbeques, de obras de arte, ou de peças de museu. Não. Sou um ladrão mais refinado. Roubo ideias.
Uns, como se sabe, especializaram-se em deitar mão ao que as pessoas têm, possuem. Eu apenas esbulho o que vai na mente de cada um.
Não é fácil esta arte, porque obriga a especialização e a estabelecer com o roubado fortes relações de amizade. Pelo menos até se perceber se ele tem ou não ideias. E obriga, igualmente, a uma forte cultura geral. Aliás, só posso ter esta refinada profissão, porque sou doutorado.
Se não vejamos. Para roubar a ideia de uma partitura, preciso saber música. Caso contrário corro o risco de me esforçar para obter algo que não passa de peça medíocre. E o que acabo de dizer, aplica-se, é evidente, a outras formas artísticas.
Durante anos fui engenheiro. Como tal apropriei-me de vários projectos de que os autores apenas fizeram esquissos. E tive bastantes alegrias.
Depois fui economista. O património ideológico adquirido por aqueles a quem roubei fez de mim banqueiro. Não terei sido um Madoff, mas não andei muito longe. Só que o país é pequeno e, ao fim de alguns meses, já era eu o roubado. Um prejuízo e tal.
É claro que também estive no desporto, onde roubei pouco, porque as ideias eram escassas, e as que valiam a pena, já não pertenciam ao país.
Como advogado fiz sucesso. Os estagiários tinham o conceito e eu desenvolvi-o sob nome próprio. Foi a minha rampa de lançamento para a política e para o enriquecimento.
Cheguei finalmente às grandes empresas. Públicas, claro. Aí já não precisava de roubar porque outros o faziam por mim.
Foi esta a minha carreira. Sou, hoje, um homem tido por sério. Como convém ao público retrato de quem, agora, se dedica a apoiar obras sociais.

Helena

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

O Cacilheiro


Não sabe o seu nome sequer. Quando ele tentou dizer-lho já o barco se preparava para partir e era tarde demais. Não sabe o que fazia naquele bote, àquela hora tardia. Possivelmente era embarcadiço.
Parece estranho este começo. Mas foi mesmo assim, de modo bizarro que tudo aconteceu. Vou contar-vos a história que, como podem intuir, é bastante fora do comum.
Deolinda tinha um mau casamento, um emprego sem interesse e poucos amigos. Não era pobre, mas também não era rica. Talvez remediada, como diria a minha avó. Remediada também na beleza. Mas rica na vontade de mudar de vida medíocre que levava.
Uma fim de tarde de primavera, com o sol ainda forte, resolveu sair do emprego mais cedo e atravessar o Tejo. Não que morasse na outra banda. Mas uma irreprimível vontade de olhar o mar, fez com que decidisse embarcar num destes modernos botes que fazem a travessia do rio.
Quando entrou, o homem que a tentou ajudar, também lhe acelerou o ritmo cardíaco. Pela farda deduziu-lhe a ocupação. E, pelo tempo que lhe guardou as mãos entre as suas, adivinhou-lhe o interesse.
Sentou-se em lugar propício ao contacto visual do fogoso tripulante. Mas ao perde-lo de vista ganhou-lhe a proximidade do contacto. Primeiro o corpo, lado a lado. Depois as mãos que discretamente iam lutando contra os abafos protectores. E, ao ouvido, as palavras de quem está mais afeiçoado às agruras do mar, do que às venturas e pruridos dum leito burguês.
A noite caía, as defesas de Deolinda também e as mãos do marujo continuavam a sua rota. Um prazer indizível e um mau caminho prometido. Ambos já debaixo de uma manta oportunamente posta à disposição de quem se quisesse proteger do bater do mar encrespado.
Foi no crucial momento que tudo prometia, que uma voz alterada rompeu o silêncio com um "homem ao mar", que pôs todos em alvoroço e obrigou o protagonista desta história a atirar-se à agua gelada, para salvar uma criatura, que afinal era mulher.
Depois, Deolinda não viu mais o salvador que, encharcado, se deve ter recolhido e abrigado do frio do cair da noite. Até que, já atracados no cais, lobrigou, numa pequena vigia, os seus gestos e lábios a tentarem dizer-lhe algo. Talvez o nome. Era o mais certo.
Mas o ruído dos motores do retorno não a deixaram perceber a sua voz...

Helena

sábado, 21 de janeiro de 2012

Amor não olha idade


Era velha. Sem o ser. Era-o na idade, no cartão de cidadão, nos netos que já tinha, na caminhada que fizera.
Mas era uma jovem na atenção com que olhava o mundo à sua volta, nas transformações por que passara, nas paixões que ainda despertava. Não, não eram paixões físicas, de posse ou de desejo. Eram paixões mais fundas, de encantamento, de dependência intelectual.
Teresa tinha sessenta anos biológicos. Mas o aspecto e a fogosidade de uma mulher de trinta, que já vivera o suficiente para destrinçar o que valia e o que não valia a pena. Era, enfim, e ainda, uma mulher de fascínio.
Foi assim que Alexandre a viu e foi por ela que se apaixonou. Entre ambos uma pequena diferença de catorze anos... Nada com que ambos parecessem incomodar-se.
Incomodada sim, ficou toda a família, quando Cecília os surpreendeu com a notícia de que tencionava casar-se. Tencionava e fe-lo mesmo.
Enquanto durou foi bom. Curiosamente foi essa diferença etária que fez com que se completassem. Ela mais madura, não cedendo à primeira dificuldade. Ele apoiando-se na força dela. Ambos querendo e desejando que aquilo que os unia saísse reforçado.
Algum sentiu medo? Nunca saberemos. O certo é que aquele enlace durou dezasseis bons anos e só terminou quando, inesperadamente, numa noite Alexandre morreu.
A lição que se pode tirar é que não vale a pena desistir de viver por medo da própria vida. Ou das suas convenções, o que vem dar ao mesmo...

Helena

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Retorno


Marília nascera em África. Tinha na pele a marca dessa liberdade. Tudo o que lhe limitasse o corpo, os movimentos, provocava nela uma dor imensa. Por isso foi feliz na terra rubra onde decorreram os seus primeiros anos de vida.
Mas a guerra viria a determinar o retorno dos pais a Portugal. E, de caminho, o seu primeiro contacto, infeliz, com um mundo que jamais seria o seu. Tinha nove anos quando tal aconteceu.
Seguiram-se anos de saudade, não mitigada, daquelas ruas onde se mexia à vontade e onde nunca a cor da pele dos seus amigos fizera qualquer diferença.
Faltava-lhe o ar, a imensidão do território, a cor fulva do céu e o cheiro. Sobretudo, o cheiro da terra, que ela não conseguiu, nunca, encontrar em qualquer dos lugares em que viveu. Que a família chamava de continente.
Os pais desapareceram, as velhas brigas que haviam determinado o seu retorno apaziguaram e Marília continuava trinta anos depois, a considerar que nem a Europa nem Portugal eram a sua casa. Decidiu, assim, retornar a África, convencida que só lá poderia ser feliz.
Mal pisou o chão do aeroporto sentiu a diferença. O cheiro era o mesmo, mas alguma coisa tinha mudado. Instalada no hotel a sensação repetiu-se, sem que ela soubesse explicar o que é que estava diferente.
Resolveu sair, misturar-se na multidão e voltar aos lugares da sua infância para aí poder, finalmente, encher de ar, daquele ar, os seus pulmões.
Foi um choque. Os sítios estavam lá, mas nada era igual.
Sentada frente ao mar Marília percebeu que construíra um sonho. Aquela já não era a sua terra. Era, apenas, o local onde passara a sua infância...

Helena

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

Um grande amor


Não sei como nasceu este grande amor. Sei que foi através das palavras que o conheci. Só muito mais tarde lhe vi a cara numa foto de um velho jornal.
Não sei onde vive, se é casado ou solteiro, se tem ou não filhos. Sei o que vem na Wikipédia, o que é pouco e, possivelmente, falso. Mas nada disso interessa ou acrescenta alguma coisa ao que sinto por ele.
Um dia, há alguns anos, numa livraria, peguei num livro seu. Folheei-o porque o título me encantou. Página após página, fui sendo aliciada. Num repente, peguei-lhe, paguei-o e saí.
Cá fora levei-o junto ao peito, sentindo que o meu coração se agarrava aquelas letras. Caminhei devagar até ao carro, para apreciar melhor o seu pulsar.
Já sentada, peguei-lhe com cuidado. Olhei-o fixamente e comecei, de facto, a lê-lo. Muito devagar, mesmo muito. Primeiro em voz baixa, quase soletrando. Depois, depois num crescente de paixão, fui-o lendo com sonoridade aumentada, indiferente aos peões que passavam e estranhavam a minha figura.
Já passava das dez horas quando terminei a leitura. Era ele, o autor, o homem da minha vida, aquele que me dizia, por escrito, o que eu tanto sonhara que alguém, um dia, me dissesse de viva voz. Exactamente aquilo.
No dia seguinte, procurei outras obras suas. Que adquiri, com o mesmo encantamento. Nunca como até então alguém se infiltrara na minha vida daquele modo. Aquelas palavras circulavam agora no meu sangue, misturavam-se com as células da minha pele.
Eu encontrara, por fim, o mensageiro que havia de mudar por completo a minha existência!

Helena

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

O erro


Miguel tinha o péssimo hábito de considerar que só havia duas espécies de mulheres. Mais especificamente, aquelas com quem se casa, e aquelas com quem se dorme. O que é não só muito redutor, como esquece algo essencial, que é o facto que decorre de, por norma, também se dormir com quem se casa...
Machista como era, "sérias" para ele, eram a mãe e as irmãs. Apesar de correrem algumas "estórias" a respeito de uma delas. E, fanfarrão, dizia que havia de casar com alguém que fosse um modelo de virtudes.
Curiosamente Mariana, mulher pragmática, pensava o mesmo dos homens. Para ela havia aqueles que punham a aliança no nosso dedo, e aqueles com quem se brincava uma ou vária noites. E praticava o que pensava. Ou seja, brincou muito durante a sua juventude.
Mas como era hábil soube sempre fazer as suas romarias em moldes muito discretos e como tinha a ajuda-la um aspecto angelical, gozava de grande respeito junto dos amigos.
Nada talhava, por isso, estas duas almas para um encontro sério. Mas, na vida o homem põe e Deus dispõe. E por um mero acidente de percurso, a vida pregou-lhes uma partida.
Certa tarde, quando justamente Mariana saía de um hotel onde havia passado uma tarde de entretenimento, chocou de frente com o carro de Miguel. O embate foi tão violento que a condutora desmaiou.
Quando acordou estava num hospital rodeada da família, de um agente da polícia e do seu agressor, que também ali fora tratado de uns pequenos ferimentos.
Mariana, ao contrário, sofrera graves contusões e em estado de pouca lucidez, o que impediu a polícia de tomar as suas declarações.
Passaram-se semanas de internamento em que Miguel não deixou de estar diariamente presente. Talvez por isso a tenha classificado, no seu íntimo, como pertencendo à categoria das casáveis.
Os meses passaram. A vítima não teve sequelas, as companhias de seguros acabaram por se entender quanto às indemnizações e Mariana retomou a sua vida. Miguel é que não. Apaixonara-se.
Tanto, que, confiante na sua sorte, propôs-se a Mariana. Esta, a sorrir, disse-lhe que não. E explicou-lhe que ele era o protótipo dos homens com quem se não deve casar...

Helena

quinta-feira, 5 de janeiro de 2012

Carta à "outra"


Cara Noémia

Você não me conhece. Nem eu a si. Mas ambas conhecemos um mesmo homem. Bom, não é original, já sei. Muitas outras o terão já conhecido e muitas outras o irão conhecer ainda.
Calculo que, neste momento, você não compreenda por que razão estará a receber esta carta. Acredito que esteja mesmo surpreendida. Ou, quem sabe, estará, antes, assustada, caso o meu nome lhe diga alguma coisa.
Aquiete-se. As minhas intenções não podiam ser melhores. O que pretendo é fazer de si uma amiga e não uma adversária. Mas para que tal seja possível, terei que lhe contar primeiro como conheci o António.
Eu ainda estava casada, mas as coisas lá em casa andavam muito tremidas. Um dia, uma discussão pôs a nu o que quer eu quer o Roberto, sabíamos. O casamento acabou.
Mas no triste período de uma ruptura há sempre almas masculinas que querem dar-nos apoio. Foi o que aconteceu com António, que não suportava ver uma mulher triste sem se pôr ao seu dispor.
Foi persuasivo. Também ele estava a passar um mau bocado. Mas uma filha pequena travava - dizia o maroto - ainda, a procura de um novo lar.
Mais tarde eu viria a perceber que o que travava um novo lar, era a segurança que lhe dava aquele que tinha, docemente cumulável com as promessas que ia fazendo às avezinhas que consolava.
Todavia, no nosso caso, foi tudo tão excessivo, tão intenso, que ele abandonou mesmo o lar e casou comigo. Esquecendo eu a velha sabedoria popular que afirma "quem faz um cesto, faz um cento". Assim foi.
Ao segundo ano de casamento já o bom António andava a pular de galho em galho. Fui-me fazendo de parva, na esperança de que não aprecesse ninguém como eu... Afinal apareceu você!
Julgou, por acaso, que era a única que ele amara depois de mim? Ele também lhe contou essa história? E você acreditou?
Não, cara Noémia. Depois de mim, apareceram muitas. Mas você é especial. Como eu fui. Só que aprendi a reconhecer, à distância, os riscos que corro.
É, então, chegada a altura de perceber a razão desta missiva. Você não quer perde-lo. Eu também não. Que tal uma espécie de custódia repartida em que cada uma de nós o tem por uma semana?
Espero uma resposta sua. Pense bem. Olhe que quem tudo quer, tudo perde!

Sua Deolinda