quinta-feira, 24 de maio de 2012

A viúva


A condessa já tinha morto três maridos e herdado as respectivas fortunas que iam sempre engrossando o seu património. Os filhos nem piavam perante tanto matrimónio e viuvez porque, no fundo era a eventual herança que ia engrossando.
Aquilo que na realidade os preocupava é que mãe fosse escolhendo maridos cada vez mais novos e em que o risco de serem eles, os eventuais usufrutuários dos bens, se tornava cada vez maior.
A certa altura Cândida - era esse o seu nome - reuniu a família para lhe dar conta de que tinha novo pretendente. Novo, de facto, em toda a acepção da palavra, porque o jovem conseguia ser de uma geração mais recente que a do seu filho caçula.
A reunião foi agitadíssima. Os filhos resolveram lembrar à mãe que os seus sessenta e nove anos eram pouco compatíveis com os trinta do futuro noivo. Nada a demoveu. E nada serenou, é evidente, os descendentes. Nem a garantia, dada por Ernesto - que tinha tanto património como Cândida - de assinar qualquer documento válido, no qual declararia abdicar de tudo o que fosse da futura mulher, sem lhe pedir declaração idêntica.
Chegou o dia do casamento, depois de grandes discórdias quanto ao fato que a mãe devia levar. O acordo veio lá se fechou num sóbrio tailleur café com leite muito claro.
Terminada a cerimónia os noivos foram para lua de mel num belo carro de desportivo que o noivo dera de presente à mulher. Enfim, andaram por essa Europa, cabeça ao vento, mais de um mês. E quando voltaram, a boa disposição era evidente.
Tudo corria bem entre os recém casados. Até que um jantar de ostras haveria de ditar a sorte de Ernesto, que não sobreviveu à força do envenenamento.
De novo Cândida estava viúva. E, outra vez, mais rica porque Ernesto, feliz e sem filhos, a instituíra sua herdeira universal!
Agora, surpresa das surpresas, são os filhos que querem que a mãe termine a sentida viuvez...

Helena

segunda-feira, 21 de maio de 2012

A cor de chocolate


Conheceram-se na escola primária. Ela loira, olhos claros, despachada e com vontade bem firmada. Ele moreno, olho escuro, trigueiro, pacato.
Eram ambos bons alunos e interessados em aprender. 
A família do Tomás viera de África a quando da descolonização. A da Deolinda era natural do Algarve.  Foi aqui que as duas famílias se haviam de encontrar e de se tornarem amigas.
Apesar dessa amizade familiar, nada os destinaria um ao outro, tão diferentes eram as suas formas de ver o mundo. Mas o facto de terem feito escolhas curriculares semelhantes levou a que os seus destinos se cruzassem. Da escola passaram ao liceu - sim, nesta época ainda havia essa instituição, hoje ultrapassada pela Escola Secundária -, e deste rumaram à Universidade. Um e outro escolheriam medicina.
Foi nesta rota que a relação se estreitou e decisão de unirem futuros se começou a esboçar. Com efeito, no último ano, resolveram fazer economias e juntarem-se na mesma casa. Aliavam, assim, o útil da partilha de habitação e do encaixe da renda, ao agradável da partilha dos corpos. 
Podiam, até, dar-se ao luxo de perceberem se, perante as diferenças, o que os unia era mais forte. E foi-o, de facto.
A relação manteve-se durante uns anos, mais concretamente, até terem garantido o seu trabalho. Foi quando pensaram dar outra dimensão à família que já formavam, ensaiando uma nova realidade, a de pais.
A gravidez de Deolinda viria, então, fechar um ciclo e dar início a um outro.
Tudo parecia correr bem. O lance fatal começou com o nascimento da criança que, para espanto de todos, era cor de chocolate.
Foi um alvoroço de desconfianças. Como era isto possível, perguntava-se a família de Tomás, sendo os pais de raça branca? Teria havido troca de crianças, chegaram a admitir.
E, por fim, chegou a questão mais grave, aquela que punha em causa a seriedade de Deolinda. Naquele momento, naquela altura, só havia uma forma de agir. Fazer testes e perceber que mulher era, afinal, a mãe da criança. Ou, dito de outro modo, averiguar se o filho era ou não, de Tomás.
Fizeram-se os exames necessários. Não havia qualquer dúvida sobre a sua paternidade. O que não se sabia, é que, afinal, ambos tinham tido trisavós de cor...
Porém, mal estava feito. A confiança fora quebrada e nada do que soube posteriormente foi suficiente para a restabelecer. Afinal as leis de Mendel e as probabilidades que a mesma estabelece continuam, para muita gente, a ser desconhecidas...

Helena

sexta-feira, 18 de maio de 2012

A terra de ninguém


Era um magricela de quem todos se riam na escola. Tinha um olhar triste e adivinhava-se que em casa a fartura não devia ser muita.
João nascera numa família muito modesta onde nem pai nem mãe foram, alguma vez, alfabetizados. Talvez por isso, sempre olharam com grande desconfiança para aquela ambição de saber que o filho revelava. A bem dizer nem a compreendiam. E até consideravam que a sua obrigação era ajudar os pais na sua labuta diária e não ser o rato de biblioteca que na realidade era.
Um dia receberam uma carta da escola pedindo-lhes que autorizassem o João a participar de um concurso, cujo prémio era uma bolsa de estudos universitários em Inglaterra. Disseram de imediato que não, que não havia dinheiro para esse tipo de despesas.
Mas a bolsa pagava tudo, caso ele a ganhasse. E ganhou.
Foi um tempo essencial na vida do João que, durante cinco anos, não mais veio a Portugal. Excelente aluno teve, de imediato, uma oferta de emprego que aceitou sem reservas.
E, ao fim de um ano de trabalho, já com mais folga económica, veio ver os pais. A sua intenção era comprar-lhes uma casa melhor e proporcionar-lhes um fim de vida mais folgado.
Mas o encontro foi muito traumatizante. O jovem tornara-se um homem bem constituído e com uma bela presença. Mas o seu mundo já não era  o dos pais, nem estes conseguiam reconhecer naquele senhor o rapaz que os deixara com dezasseis anos. A conversa não fluía e o acanhamento dos três era flagrante
De retorno a Londres, João tinha a noção de que já não era dali, da terra onde nascera. Mas sabia, também, que tão pouco pertencia à terra, ao país onde vivia há cerca de sete anos. 
Há casos e momentos assim, em que sentimos que apenas pertencemos a uma terra de ninguém...

Helena