quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Lágrima redentora


A fotografia, a sépia, já não estava em bom estado. Eram anos e anos junto do coração de Eduardo, passando de carteira para carteira, jamais esquecida ou, até, trocada. Nela se viam, perto da escola primária na planície alentejana, duas crianças de bibe e de mão dada. Estavam ligeiramente afastadas do restante grupo escolar que tinha no centro a professora.
Como tantas vezes acontecia quando lhe pegava, perguntava-se onde andaria Catarina, a quem então considerava de namorada e que como tal continuou até à sua vinda para Lisboa cursar Medicina.
Lembrava-se bem de como ambos, já adolescentes, haviam picado o dedo anelar e misturado os seus sangues, prometendo-se um ao outro. Compromisso mantido depois da primária e durante o liceu, nesses anos em que nunca se deixaram.
Mas, como nas telenovelas de hoje, a diferença entre os dois era grande. Ele filho do ferreiro da aldeia. Ela filha do advogado da terra. Ele partira para Lisboa a cumprir a ascensão social que os pais lhe haviam destinado. Catarina, por seu lado haveria de juntar à ambição paterna, as terras de um grande latifundiário da região. Tudo acontecera nos cinco anos em que terminara o curso.
Os pais, que esperavam o seu regresso à terra que o vira nascer, ficaram tristes quando souberam do convite que lhe havia sido dirigido para, nos Estados Unidos, fazer investigação. Mas aceitaram porque era acarreira do filho que estava em causa. Não os seus gostos pessoais.
Ela só mais tarde tivera conhecimento da decisão, já estava casada. Muitas vezes pensava que o destino não se escreve. Já está escrito. E que Eduardo não teria que ser seu, apesar da selada promessa que haviam feito.
Eduardo, embrenhado na vida profissional, não casara nem tivera filhos. Apenas ligações de ocasião sem qualquer importância que não fosse a conveniência da altura. Hoje tinha pena. Voltara por fim a Portugal onde fundara num hospital, um modelar centro de investigação.
Desde que a mãe morrera trouxera o pai para junto de si e rodeara-o de todo o conforto, como já, aliás, antes fizera aos dois quando vivera na América. Comprara-lhes uma das boas casa da região e de ferreiro o senhor Andrá passara a dono de uma loja de ferragens onde tinha quem trabalhasse para ele.
Catarina tivera dois rapazes. Um seguira as pegadas do pai. O outro tornara-se médico na capital, onde era respeitado e admirado. Também ele ia de quando em vez visitar a família. Gostava de lá estar. O Alentejo temperava a sua vida urbana e o stresse do bloco operatório.
Os anos foram passando. Eduardo nunca mais viu a antiga paixão. Diziam-lhe que não parecia a mesma e que a casa apalaçada onde vivia se tornara no centro cultural da região.
Uma tarde quando se preparava para sair, uma enfermeira chamou-o para uma urgência. Havia que tomar uma decisão e o médico cirurgião queria ouvi-lo. Voltou atrás, fardou-se e entrou na sala de operações. Na sua frente tinha uma série de chapas. Era preciso decidir se devia ou não intervir-se. Só nessa altura reparou na doente. Era Catarina.
Por uma fração de segundos sentiu o bater do seu próprio coração. Depois tomou-lhe as mãos da doente e disse"não vale a pena. A paciente acaba de falecer".
Já no seu gabinete, olhava a fotografia. O destino, com efeito, não se escreve.Uma profunda e silenciosa dor permitiu-lhe, finalmente, a lágrima redentora!

Helena

3 comentários:

  1. Estimada Helena,
    Não, não me esqueço de si e posso dizer-lhe que embora sem comentários,a visito regularmente, para, como é obvio,me deliciar com tudo o que vai escrevendo.
    Mas deixe que lhe diga: Apesar de gostar de quase tudo o que tenho lido no seu "fio de prumo", estou completamente "viciada" neste seu novo blogue do qual tomei conhecimento ao ler o fio de prumo.
    Parabéns Helena, mais uma vez, pela sensibilidade e pela partilha de tão belas estórias, verídicas ou ao sabor do seu grande pensamento.
    Acho que os seus ensinamentos nos ajudam a saber viver com um pouco mais de paciência e convencimento face aos acontecimentos da vida que nos bombardeiam diariamente.
    Um grande beijinho para si.

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  2. Só confirmei o que já sabia: a Helena acredita no Destino. Muitos dos mais cultos e bem sucedidos amigos também. Porém, eu (ainda) não. Gostava de participar na escrita do meu; controlar-lhe o desenvolvimento e tomar-lhe o pulso sem grilhões. Será possível? É possível...?

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  3. Obrigada Tété.
    Paulo
    De facto, em termos pessoais, até acredito mais no livre arbítrio. Porque tenho um lado pragmático muito acentuado.
    Mas luto que nem uma leoa por aquilo que quero e por quem quero. Só desisto quando tenho consciência ou certeza de que não chego lá.
    Mas aí o corte é total.
    Você vai escrever o seu destino, caminhando. É a unica forma. Mas sabendo que ao escolher um, abdica de todos os outros!E isso é uma arte, que vou dominando cada vez melhor. Vantagens de ter vivido muito...

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