Marcela ainda olhou para trás e viu-o caminhar. O passo não era tão regular como antes, o tronco parecia menos direito, mas a cabeça, essa continuava com o mesmo porte de antigamente. Com mais dignidade até porque os cabelos brancos davam-lhe uma auréola diferente. Foi tudo há tantos anos, pensou.
Era o seu primeiro dia na Universidade. Finalmente tinha conseguido vencer a oposição do pai e da maioria da família. Mas tinha o apoio, sempre incondicional, da mãe que via na filha a realização de um sonho que ela própria não conseguira concretizar. O de ser médica. O de ajudar os outros ajudando-se a si própria na através da sua vocação.
Foi numa das primeiras aulas que o conhecera. Quase cegara de encanto, a ouvi-lo. Lindo de morrer, mas sobretudo um professor de excelência. Tudo era simples através das suas palavras. Foi numa dessas palestras que se apercebeu que estava apaixonada. Pelo mestre. Mas também pelo homem. E a decisão surgiu de imediato. Ela iria ser a sua melhor aluna, a sua mais dilecta ouvinte, a sua mais preciosa colaboradora. Não sabia como tudo isto se iria concretizar. Mas tinha a certeza de que não falharia. Para tanto fez um levantamento exaustivo de quem era o seu amor. Desde a família, aos gostos pessoais e interesses científicos, tudo foi passado a pente fino. Nada ficou de fora!
No primeiro trabalho escolar proposto, escolheu exactamente aquele que melhor se enquadrava no apuramento que fizera das suas preferências. Foram horas e horas de trabalho. Mas que haviam de merecer não só o elogio, mas a discussão pública, perante a turma do tema por si analisado .
Marcela sentiu-se quase como uma "igual". Não era, claro. Mas ele, Afonso, tinha dado por ela! E esse facto foi determinante. Seguiram-se novos trabalhos e novas oportunidades de um contacto mais próximo. Agora, era ele quem solicitava a sua colaboração para aquilo que publicava.
O ano escolar acabou. Marcela teve, como seria de esperar a mais alta classificação. No fim do exame o professor disse-lhe que ela havia sido a sua "descoberta do ano". E obteve resposta pronta. Sem pensar, a aluna retorquiu " o professor também". Seguiram-se uns segundos de silêncio. Depois, um convite para jantar. Algo parecido com uma comemoração.
A este seguiram-se outros. E aos outros, seguiram-se encontros vários. Mais íntimos.
A aproximação profissional também se consolidou. Quando a licenciatura chegou os convites foram muitos. Marcela continuava apaixonada, mas sabia que a sua vida familiar, se algum dia existisse, não passaria por aquele homem. O tempo tornara-a sábia e ensinara-lhe que Afonso não era para casar...
Assim, quando veio o convite para leccionar nos Estados Unidos, não hesitou. Aceitou, sabendo que, de uma só vez, ia resolver dois problemas. O profissional e o pessoal.
Os anos passaram. A América passou a ser a sua pátria e Portugal a sua origem. Casou e teve filhos. Divorciou-se. Duas vezes.
Hoje era uma profissional de renome. Viera a Portugal fazer uma conferência e resolvera ficar uns dias na capital. À saída do hotel resolvera descer a Avenida da Liberdade. A manhã estava soberba. Parou numa pastelaria para beber um café. Aquilo de que verdadeiramente sentia saudades... Ao lado, no balcão estava um homem que a olhou fixamente. Mas nem um sorriso esboçou.
Marcela teve uma sensação estranha. Aquele olhar tinha algo de familiar. Quando o indivíduo saíu, soube. Ainda esteve para o tentar apanhar. Mas ficou parada no passeio, a vê-lo afastar-se. Estavam ali, naquele homem, corporizados seis anos da sua vida. Seis anos...
Helena
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