quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Acontece...


Conheceram-se nos anos sessenta, em rescaldo de duas separações sentimentais. Ele intelectual artista, utópico, culto, sedutor, oriundo do Algarve. Ela, jurista, actualizada, excelente profissional, defensora dos direitos do género, pragmática, oriunda do Norte.
Militantes ambos de movimentos juvenis, sonhavam alto e eram conhecidos no meio cultural burguês onde tinham nascido. Um de esquerda, como convinha a um utopista. Outro de direita, realista, como convinha a quem se serve da lei para distribuir a justiça.
Nada parecia aproxima-los, a não ser o sentimento de orfandade que, por norma, acompanha as rupturas emocionais. Mas ambos se apaixonaram. Não um pelo outro, mas sim pelo retrato que cada um fazia do outro.
Ela já a trabalhar, era o sustento da casa. Ele a preparar um doutoramento, só pensava na tese que defenderia brilhantemente. Sem filhos foram, durante uns anos, o modelo dos seus pares.
Até que, um dia surgiu um convite para que o artista expusesse numa galeria de New York. Irrecusável, claro. Ele foi. Ela ficou. À espera que, terminado o evento, ele voltasse. Não voltou. Nem sequer para o divórcio que a deixou numa depressão que só um internamento hospitalar conseguiu debelar.
Ela, a forte e pragmática, perdera-se na fragilidade dele. Ele refizera-se nos braços de outra mulher, noutro país, noutro mundo.
De vez em quando chegavam-lhe notícias de uma carreira revolucionária que iniciada aqui acabaria por desenvolver já longe. Depois a notícia, de contornos confusos, que havia sido preso. Nada mais.
Os anos passaram, as notícias desapareceram. E, numa tarde de Dezembro, na véspera de Natal, alguém bateu à porta. Sem prendas ou ar festivo, um jovem que aparentava ter vinte anos, apareceu. Para lhe entregar um embrulho que, pediu, abrisse na sua presença. Era um monte de cartas dela e uma aliança enroladas numa fita vermelha.
Incrédula, olhou para o portador que, num precário português, lhe disse que era filho do destinatário das missivas. A mãe e o pai haviam desaparecido. E ele vinha cumprir o desejo deste último...
Como a história não se escreve e o futuro não se adivinha, hoje são grandes amigos!

Helena

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O condomínio


Era um condomínio de luxo. Naqueles em que para se comprar ou arrendar casa, é necessária a prévia aprovação dos outros condóminos. Portanto, não bastava ter dinheiro. Era preciso ter nome, pedigree.
Dinheiro ele até tinha bastante, porque era jogador de futebol, essa nova classe social, que ganha num dia o que cem trabalhadores não ganham em toda a vida. Mas não tinha o porte, nem falava como os restantes eventuais vizinhos. E ostentava, justamente, o que os outros escondiam.
A situação estava a tornar-se complicada. O Chéu - era este o nome porque era conhecido no meio futebolístico - já fora a várias entrevistas, já mostrara uma mala com dinheiro, já sacudira o Rolex de ouro no braço, já ostentara o brilhante de nove quilates no dedo mínimo, enfim, não podia expor mais a sua grande fortuna, na tentativa de convencer os dois administradores que seleccionavam a sua admissão.
O problema maior era a família que vinha da terra para passar as Festas com ele e, a quinze dias do Natal, o alojamento de todos não se encontrava ainda resolvido, o que retirava a Chéu o prazer de mostrar como a sua vida mudara. Conversa para aqui, conversa para ali, suborno incluído, nada demovia um dos examinadores que não se convencia perante o exibicionismo das toillettes do casal e a sua simultânea dificuldade de expressão. Não, eles não pertenciam à upper class que ali habitava. Impossível admiti-los sem criar grandes problemas àquele tipo de vizinhança!
A noite de 24 de Dezembro aproximava-se e Chéu já não sabia onde passar as Festas com a Família, que se deslocava num autocarro, que ele fretara para o efeito. No dia 23, numa última reunião em que o preço da casa havia inclusive subido, o contrato continuava por assinar.
Perante a debacle iminente, um dos administradores resolveu dar uma ajuda para a noite da consoada e sugeriu que Chéu ficasse instalado na zona dos empregados, onde havia uma casa disponível, até que a autorização de compra se tornasse definitiva.
Colocado perante o risco de não ter onde alojar os seus, Chéu acabou por aceitar, com a garantia de que na passagem do ano tudo estaria a postos para maravilhar os familiares.
Lá se arrumaram todos como puderam e iniciaram o repasto. Mas, a meio da refeição, quando se começavam a fazer os discursos a parabenizar o casal pelo sucesso que obtivera, uma tia idosa, que já não media as palavras, porque as medira toda a vida e desistira dessa contenção, exclamou:
- Ó Chéu, tu desculpa lá, mas é a este buraco que tu chamas casa?
A família ia morrendo, embora no íntimo, todos pensassem que aquela era mesmo a sua mansão, que ele disfarçara quando lhes dissera que era dos empregados.
- Sabes, filho, ainda vais ter que aprender muito. Bater bem na bola não é garantia de bater bem da cabeça. Tem juízo, enxerga-te, manda-os à vida e não fiques aqui. Vai para onde te aceitem pelo que vales e não pelo que não és.
A tia já morreu. Chéu percebeu a lição e encontrou outro condomínio onde quase todos se conhecem e onde todos se aceitam.

Passaram quinze anos sobre esse Natal. O condomínio de luxo faliu e quando lhe propuseram comprar a sua antiga casa por metade do preço, Chéu respondeu-lhes que não, que nenhum dos condóminos passava no seu exame de admissão...

Helena

Nota: Este conto de Natal foi um pedido da Lisa. Não tem lareira, nem presépio, nem Pai Natal. Mas tem a vantagem de ser quase verídico!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Antigamente...


Era já época de calores abrasivos. A pauta marcava seis alunos para as orais da parte da tarde. A professora, a doutora Elvira, vinha esbaforida de calor e, para mal dos seus pecados, o ar condicionado da sala de aulas, funcionava de modo intermitente. Estavam assim reunidas as condições menos felizes para discentes e docentes.
A primeira aluna não se portou mal e saíu com catorze valores. O segundo levou dez, mas se estivesse mais fresco, talvez não tivesse passado. O terceiro reprovou e nem à oral devia ter ido. Foi uma daquelas repescagens a que, numa segunda visão de notas, se resolve dar o benefício da dúvida.
A quarta, menos mal, conseguiu um doze sem custo. O problema surgiu com o quinto, Alexandra, cujas capacidades a professora conhecia bem de um ano de trabalho com qualidade acima da média.
A aluna entrou na sala e sentou-se na cadeira. Elvira examinava, com atenção, a sua caderneta escolar. Durante algum tempo, esteve a folhea-la para se aperceber das classificações tidas nas outras disciplinas.
Demorou um pouco nesse seu interesse, enquanto se esforçava, com um leque, por diminuir a temperatura do corpo.
Quando decidiu começar o interrogatório, sentiu que a jovem não estava bem. Por isso, começou com questões simples para a pôr à vontade. Mas tal não surtiu grande efeito. A boca de Alexandra não se abria e a sua testa ia-se enchendo, cada vez mais, de gotas de suor.
- voce está doente?
-não. Não estou. Pode continuar, setôra
- veja lá se quer interromper o exame e faze-lo depois do seu colega
- não setôra, obrigado.
O exame prosseguiu mas Alexandra não havia meio de emitir qualquer som. Estava a ficar demasiadamente afogueada e o rosto ia ficando perlado de suor.
Receando que algo acontecesse, Elvira mandou evacuar a sala e fechar a porta.
A sós, depois de lhe dar um copo de água, disparou:
- ó Alexandra, diga-me lá o que é que se passa, agora que estamos aqui só nos as duas.
- não é nada setôra
- bom, então vamos ao posto médico.
Nesse preciso momento, a rapariga começou a chorar convulsivamente e de modo atrapalhado, balbuciou:
- é que a setôra estava a ver que eu sou filha ilegítima...
- Como? O que é que está dizer? Por favor, acalme-se e fale devagar.
Foi então que, entre soluços ela revelou que entendera que a professora, ao demorar tanto a ver a sua caderneta, se tinha apercebido da sua situação de filha ilegítima e se sentira muito diminuída...
- Alexandra eu estava, apenas, a ver as suas outras classificações. Nada mais. Mas aproveito para lhe dizer uma coisa: "os filhos nunca são ilegítimos. Os pais é que podem sê-lo". Vá em paz e descanse um pouco. Conheço o seu trabalho. Vou fazer-lhe o exame no fim de todos os seus colegas.

Esta estória passou-se há cerca de trinta anos, quando na lei portuguesa se consentia o uso daquela bárbara expressão jurídica!

Helena

domingo, 11 de dezembro de 2011

Às vezes, a quatro!


Adélia tivera sempre dois homens. Um conhecido e fixo, o marido de toda a vida. O outro, variável, ao sabor dos estados de alma, jamais apresentado e cuja existência era apenas conhecida dos mais próximos.
Adélia era feliz nesta periclitante situação, com a qual lidava sem qualquer problema moral. Para ela tudo se resumia numa questão de diversidade amorosa e ria-se sempre daqueles que a censuravam, mas no fundo só desejavam ter a coragem de fazer o mesmo.
A sua única reserva era não se envolver com colegas de trabalho e ser para André, seu marido, uma fonte a alegria e bem estar, que embora fosse carregada no exterior, era com ele que ela a partilhava.
André era também um homem feliz. Por várias vezes se questionara se a vida que proporcionava a Adélia não seria pouca coisa em relação aquilo que ela poderia desejar. Mas vi-a sempre tão satisfeita, tão atenciosa, tão ligada a ele, que só podia ser amor aquilo que os unia. Se ele nunca a enganara, porque não faria ela o mesmo? E o assunto deixou de o preocupar...
Até que surgiu Matilde na vida dele. Era uma cópia de Adélia, mas com menos quinze anos em cima. E mostrava que gostava dele, sem qualquer rebuço.
Uma tarde que ficaram a trabalhar até mais tarde, Matilde avançou. André ainda tentou um atrapalhado:
- mas eu sou casado e feliz.
- eu sei, mas não estou a querer casar contigo. Quero apenas fazer-te mais feliz.
E fez. Na realidade a vida de André deu uma volta. Agora sim, ele sentia que era finalmente para Adélia o marido que ela merecia, mais alegre, mais solto, mais descontraído e, sobretudo, mais apto.
Adélia perguntava a si própria o que teria levado André a tamanha transformação. Não fora ele um homem tão sério e ela diria que havia outra mulher. Mas com André tal não era possível.
O que é certo é que o seu novo homem a esgotava. Tanto e tão bem que, agora, era ela que não tinha tempo nem vontade de procurar satisfação noutros braços.
Numa tarde André disse-lhe que gostava de convidar para jantar a sua nova colega e o marido. Adélia não se fez rogada e na data aprazada lá se encontraram todos.
Adélia ia sucumbindo. Só podia ser castigo. O marido de Matilde era, justamente, o seu último amante!
Recomposta, foi uma dona de casa perfeita. Que percebeu, finalmente, a boa disposição do seu marido. Afinal era a felicidade de ambos que estava em causa e tinha um segredo comum... que iria continuar a sê-lo.

Helena

A bigamia tranquila


A luz do quarto era coada, própria daqueles fins de tarde de Outono, de que Joana tanto gostava. Era um Domingo igual a tantos outros que ela já passara. Na cómoda um ramo de rosas bebia a agua do pote de vidro transparente em que estavam acomodadas e libertava o odor característico de quando acabavam de ser colhidas.
A roupa, abandonada na cadeira de veludo e no chão, indicava bem a pressa de quem a despira. Lá longe, vindo de fora, um vozear de crianças e adultos era prova de vida.
Joana enrolou-se bem no edredon para, alguns minutos depois, começar finalmente, a espreguiçar-se debaixo dele. Que horas seriam, pensou. Mas a preguiça que ainda a dominava, superou a curiosidade de olhar o relógio no outro lado da mesa de cabeceira. E assim continuou, com pequenos gestos anímicos, durante alguns minutos mais.
Finalmente lá rodou o corpo para o outro lado da cama. A almofada, enorme, amachucada, ainda tinha o cheiro do corpo do Guilherme. E ela enterrou o rosto nela como se, com esse gesto, trouxesse de volta um pouco dele, da tarde de domingo que ele sempre lhe dedicava.
Olhou as horas - sete e meia - e reparou que ele se havia esquecido do seu
belo IWC que o banco lhe oferecera por vinte e cinco anos de dedicado trabalho.
Quase tantos como aqueles que ela lhe dedicara de vida, contados pelas tardes que, no dia de descanso, entre as três e as seis horas, ele lhe concedia desde que passara a acumular com as funções de secretária, a de amante exclusiva.
Fora esta a sua vida desde que, aos vinte anos, fora seleccionada, para ser a sua sombra. Hoje tinha quarenta e dois, o Guilherme e o emprego. Nada mais!
Às vezes julgava que era pouco, que tinha direito a muito mais, depois de lhe ter entregue tudo, até a sua virgindade. Mas o que mais a desgostava não era o que lhe dera. Era o que ele lhe tirara. De vida, de convívio, de amizade. A que inicialmente ela não reagira - era, afinal, uma forma de ele a amar, pensava - mas que agora, acentuava profundamente a vida solitária que levava e ele tanto apreciava.
Quantos Domingos representavam vinte e três anos? Mil e muitos, com certeza, calculou. Estava nestes pensamentos quando a fechadura da porta do quarto girou. Assustou-se. Afinal era Guilherme que voltava para levar o seu relógio.
- querida, descansa. Não quis acordar-te, mas esqueci-me do relógio. Deixa-te estar. O quarto está pago como sempre até amanhã. Porque não ficas aqui e vais directa para o banco?
Manda vir o jantar e vê a televisão. Hoje há o Marcelo. Sempre te distrais.
Adeus querida. Até amanhã. A Carolina já está à minha espera e eu atrasado.
Ah! Não te esqueças do processo do seguro que está quase em cima da hora.
Deixa-mo logo que chegares, na secretária. Fica bem!
- Fico bem. Mas com saudades tuas...

Helena

sábado, 10 de dezembro de 2011

Lembras-te, meu amor?


Meu amor
Eu sei que tu não queres que eu te escreva, porque as minhas cartas te irritam. Mas que queres? Eu não tenho outra obsessão que não sejas tu, que estás entranhado em cada poro da pele deste meu corpo que te entreguei e jamais será de outro.
Lembras-te, amor, das nossas tardes de paixão, ao fim de semana, na casa das Azenhas do Mar, em que o ruído do bater das ondas apenas amortecia os teus gritos de prazer?
Lembras-te, amor, de quantas vezes nos entregávamos, quase sem interrupção, as tuas mãos percorrendo o meu corpo que lhes respondia, sôfrego, numa convulsão final, que afinal o não era, porque outra e outra lhe sucedia, sem que disso tivéssemos consciência?
Lembras-te, amor, dos nossos corpos suados, no inverno, quando me possuías com paixão, consumida ao ritmo que imprimias ao teu prazer, que procurava o meu e nele se fundia?
Lembras-te, amor, dos beijos com que presenteaste cada parcela de mim, como se o meu corpo fosse uma estrada sem fim, que recomeçava e continuava em cada esquina de mim?
Lembras-te, amor, quando fiquei exangue no dia em que me confessaste que outra mulher havia tomado um novo lugar - o meu não, esse, jamais podia ser - no teu coração e me sugerias que fora a minha obsessão que ditara o nosso fim?
Lembras-te, amor, que sempre me disseste que eu era unica e que o seria até ao fim da tua vida que, sem mim, não teria, mais, significado?
Lembras-te, amor, de quem nós fomos, de quem nós éramos, nessa época? Lembras-te de mim?
Eu sei que não, que não te lembras, já, desta mulher de quase sessenta anos - os teus, também- que, numa dada altura, teve vinte, a idade daquela que, neste momento, ocupa, habita a tua vida.
Mas eu quero que, quando a tiveres nos teus braços, me recordes nesse tempo, que a minha imagem se sobreponha à dela e que seja eu, de novo, que tu estejas a amar. É por isso que te escrevo esta carta. Para que, quando a possuíres, seja eu que tu possuis.

Sempre tua
Amélia

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

As novas tecnologias


Virgínia tinha hoje cinquenta anos, três casamentos, três divórcios, duas filhas e um filho já independentes. Bom, independentes, é uma forma de expressão porque, embora ganhassem mais do que ela, também gastavam em proporção, pelo que a sua conta bancária nunca estava ao abrigo dos desvarios filiais.Era nisto que ela pensava quando, estafada, chegou a casa com uma carta na mão.
Ainda não conseguira habituar-se completamente ao ruído dos seu saltos no chão de madeira, pese embora viver sozinha, fosse a sua sina há já uns anos.
Olhou-se ao espelho do hall e sentiu em cima dela mais vinte anos.
Tinha fome mas pouca vontade de cozinhar. Acabou por tomar um chá e uma torrada e ficar a olhar, embrutecida, a televisão. Há anos que era assim...
Irritada, pensou ser chegada a altura das grandes decisões. Para grandes males o melhor eram os grandes remédios, ou, traduzindo por miúdos, a net.
Na sua página do Face contava já com dois mil amigos. Era preciso saber escolher e depois avançar. Afinal, a Rita, uma grande amiga, era aí que encontrava os homens da sua vida. Porque não tentar ela também?
Primeiro seleccionou os que tinham foto. Depois, os que tinham idade próxima da sua. De seguida, aqueles que manifestassem interesses comuns. Seleccionou dez.
Criou um texto mensagem que lhes enviou e ficou à espera. Todos estavam em chat. Seis responderam logo. Destes, três pareceram-lhe vias possíveis. A eles começou a revelar-se aos poucos.
Um perdeu-se ao fim de poucas noites. Mas os outros dois tinham, de facto, interesse. Por isso manteve-os até que o inevitável pedido de encontro veio à baila.
Porque não, pensou? Era apenas preciso decidir por qual começar . Não era fácil, porque ambos haviam sabido salgar as suas noites. Mas, perante a pressão, decidiu tornear a questão e propôs o uso prévio do Skype para o reconhecimento físico. E assim fez. A proposta foi aceite para o sábado seguinte, à noite.
Chegado o momento esperou que ring ring do computador tocasse. Às 21h30 precisas, como combinado, Pero Maduro, nick name do encantador de almas solitárias, apareceu no ecrã do seu PC.
A comoção, a surpresa e a irritação de ambos não podia ser maior. Do outro lado estava o primeiro ex marido da nossa protagonista, o pai dos seus filhos. Com mais uns quilos em cima, claro, e menos uns tantos cabelos na cabeça.
-Tu, Virgínia?!
- Eu sim, porquê?
-Então, és tu a serpente maliciosa?
- Sou eu, sim Francisco. E tu és o Pero Maduro?!... Só a mim!
- Só a ti, não. Só a mim, direi eu.
- E a tua mulher?
- Dorme.
- Ah!
Ambos desligaram o Skype. As novas tecnologias também podem trazer velhas surpresas!

Helena

Os alcatruzes da nora


Nada na vida uniria aqueles dois. Um quase analfabeto e de gente humilíssima, que lhe havia incutido a subserviência como forma de defesa das agruras que os ricos e poderosos sempre lhes traziam. Manel cresceu neste ambiente.
Maria, ao contrário, já no ventre da mãe sentia as diferenças de tratamento. Médicos de primeira e clínicas de luxo. Pais licenciados, cultos, socialmente de primeira casta, apesar de serem republicanos, intelectuais de esquerda e amantes de tudo o que o dinheiro pode comprar.
Por azares da vida, ele nasceu nasceu no meio da vinha, num parto naturalíssimo, e o leite que o alimentou foi misturado com as sopas de vinho que também emborcou.
Ela nasceu de forceps, num parto que ia pondo em risco quer a mãe quer a filha, e foi amamentada pelos leites de uma ama contratada para o efeito, não fosse o acto destroçar os belos seios da progenitora.
Ambos viviam no Alentejo e aí foram crescendo não tão distantes um do outros como este registo classista poderia fazer supor. Porque nem todas as crianças são sensíveis à herança genealógica paterna.
Mas quando Maria veio estudar para a capital deixaram de se ver.
Manel tornara-se num revolucionário empenhado em mudar as condições de vida da sua terra. Maria apenas queria exercer medicina, fossem quem fossem os doentes. Por isso feito o internato retornou às origens.
O 25 de Abril haveria de inverter os papeis. Manel tornou-se o homem forte da terra. A família de Maria viu tudo o que tinha ocupado e destruído. Os pais não resistiram e um morreu atrás do outro.
Maria trabalhava, agora, por favor de Manel, no posto médico. Manel fizer das propriedades de Maria, uma das maiores cooperativas daquela região.
Nunca se sabe ao certo o que a vida nos prepara. Mas uma coisa é certa. O que é mau para uns é, por norma, bom para outros. Ou, dito de outro modo, os alcatruzes da nora não estão sempre no mesmo sítio. Umas vezes estão em baixo. Outras vezes estão em cima. Feliz ou infelizmente...

Helena

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A aspirina


A carrinha dos medicamentos parou na Infante Santo, à porta da farmácia. O descarregador tirou um caixote e colocou-no corredor, para depois ser tudo conferido pela D. Alice, que adorava fazer aquele trabalho.
A aspirina efervescente na sua embalagem de prata sentiu que a caixa onde se alojava ficara mais leve. De facto, haviam-lhe tirado de cima um outro caixote bem pesado.
Algumas horas depois a D. Alice lá arrumou a sua caixa na prateleira. Agora, só faltava que algum cliente mais dolorido ou engripado a pedisse, para ela sentir que tinha utilidade. Claro que sabia que só possuía 500mg e que havia irmãs suas com o dobro dosagem e, admitia, o dobro da eficácia.
Mas tinha esperança de que alguém a preferisse, a desejasse só a ela.

- uma caixa de aspirina, D. Alice, por favor. Estou a começar a chocar qualquer coisa. Sinto o corpo todo moído.
- de 500 ou de 1000, senhor José?
- pode ser de 500.
- aqui tem.
-obrigado. Junte à minha conta, por favor.

Finalmente encontrara alguém que lhe iria permitir cumprir o seu destino, pensou a aspirina. Mas estavam tantas em cima dela, que não acreditava que fosse naquele dia que lhe pegariam.
José entrou na pastelaria, sentou-se na mesa e pediu um café e um meio copo de água. Quando tudo já estava servido, abriu a caixa do remédio.
O empregado, ao passar e sem querer, deu um pequeno encontrão no braço do cliente. O conteúdo caiu no chão. Aflito, pediu imensa desculpa e correu a apanhar cada uma das carteiras prateadas que se haviam espalhado. Depois de arrumadas, por um bambúrrio da sorte, a nossa protagonista ficou em primeiro lugar.
Devagar José pegou-lhe, rasgou a prata e lançou o pó no copo de água. A dissolução foi lenta, ao jeito da heroína que se sentia desfalecer e, ao mesmo tempo, rejubilava por cumprir o seu destino, deslizando pela garganta de José.
Este, de seguida, bebeu o café, pagou e saíu. A caminho do escritório já se sentia melhor. A aspirina exalara o último suspiro, os seus componentes misturaram-se com os de José e ela deixou, por fim, de existir.
Há sempre quem, devotadamente, se dedique a aliviar a dor dos outros...

Helena


sábado, 3 de dezembro de 2011

A parure


Era um homem gordo e, como a maioria deles, de apurado sentido do humor. Jurista de formação, dividia tempo e talento por uma Universidade onde era professor e pela administração de uma respeitada instituição bancária.
Nesta última função dispunha de carro e de um fiel motorista, profundamente conhecedor da sua agenda pessoal e profissional.
À época - a história, de contornos verídicos, passava-se no princípio dos anos setenta, e antes da revolução dos cravos, onde ambos os homens haviam de ser saneados -, a roupa interior era muito apreciada pelas damas.
O Professor Acácio tinha, como era então tradicional, uma mulher legítima, e outra legitimada pelos anos do convívio. Durante a semana laboral dividia-se. Ao almoço, estava sempre com esta última, e ao jantar, por norma, ficava com a primeira. Horário que, por norma, se invertia aos fins de semana.
D. Clara, mãe dos seus seis filhos, era uma roliça satisfeita. D. Odete, ao contrário, era uma esbelta mulher, que ele conhecera ainda muito jovem e que lhe aparecera como secretária, dois anos após o matrimónio, quando começara a esfumar-se o fogo da paixão.
O secretariado durou pouco, claro, porque Acácio não queria Odete partilhada na cobiça dos clientes privilegiados do banco. Assim "pôs-lhe casa" e Odete passou a ser teúda e manteúda pelo banqueiro. Diga-se em boa verdade que, à excepção dos filhos, qualquer delas gozava dos mesmos benefícios.
Num dos almoços, Odete manifestou vontade de possuir uma "parure" - nome dado ao conjunto de cueca e soutient - de renda negra que se vislumbrava numa das montras da Loja das Meias, ao Rossio.
Acácio não esqueceu a sugestão e, no dia seguinte, encomendava duas, uma de medida 38 e outra de medida 46. Iguais, mas em caixas separadas. Depois escreveu dois cartões com palavras de amor, e encabeçados ambos por "meu amor", que mandou distribuir por cada um dos embrulhos.
Chegado ao banco chamou o senhor Marques, o fiel motorista para que este procedesse à entrega. Mas esperava-o uma surpresa. Quem estava de serviço era o Garcês, porque o colega adoecera com uma gastrite.
Face à nova situação, Acácio encarregou-o do trabalho, explicando bem que um embrulho era para sua casa e outro para a morada que lhe deu.
Ao fim do dia, o motorista esclareceu-o de que havia cumprido as suas ordens. Quando chegou ao domicílio conjugal, Clara havia saído. Entraria pouco depois, dando-lhe um grande abraço.
- Meu querido a parure era linda. Mas , amor, tive que ir à Loja das Meias porque estava muito pequena. Vê tu a sorte. Não havia o meu número e, nesse instante, entrou uma senhora muito simpática, a quem acontecera justamente o contrário.
- Olha, acreditas em coincidências? O número que ela tinha era o meu. E o que eu tinha era o dela. Por isso, fizemos a troca e acabámos por dar até um abraço, quando descobrimos que ambas éramos casadas com um Acácio!
- Que sorte, minha querida. E não disseram mais nada?
- Não, Acácio, porque eu estava ansiosa por vir para casa estrea-la contigo!

Helena

Nota: Esta história foi uma promessa feita ao meu amigo e comentador Henrique Antunes Ferreira

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Corpo e alma


Ela soube, naquele momento, que tudo havia terminado. Soube-o, porque nesse instante a sua alma abandonara o seu corpo. Tudo o resto não tinha mais importância.
Ester perdera-se nos braços de Jaime no preciso momento em que o seu olhar se cruzou com o dele. Foi num fim de tarde de Outono, no bar de um hotel. Nessa altura a conversa entre ambos não foi mais do que simples pretexto para o que horas depois entre eles se passaria.
Paixão imediata? Desejo incontrolável? Não saberia responder. Nem hoje, sequer. Foram seis meses de reboliço na sua vida até à passagem por um registo, fácil, de casamento.
Trinta anos durou o matrimónio registado. Mas ela sabia que ele acabara muitos anos antes. Lá atrás, numa outra tarde de Outono, parecida com esta em que ela se encontrava depois de vir do funeral do marido.
A paixão, alimentada pelo desejo, durou bastante. Mais do que os livros dizem ser habitual. Depois, suavemente, amansou. Mas continuou a tonificar-lhe o corpo como uma vitamina que se toma regularmente para manter o bom estado físico.
Até que um dia, talvez uma noite, já não se lembrava bem, algo aconteceu. E disso, desse momento exacto, ela lembrava-se bem.
Jaime procurara-a para se satisfazer e satisfazê-la também. E ela, nos seus braços, nesses braços onde outrora dera vazão ao seu ardor, teve aquela estranha sensação de que a sua alma se separa do seu corpo. Já não era Ester que estava ali.
E já não foi mais ela que, nos anos que se seguiram, o marido encontrou. Foi o seu corpo físico que ele continuou, até ao fim, a possuir. Não ela inteira, não a sua alma. Nunca mais, até aquele instante, em que Ester sentia que acabara de a recuperar!

Helena