sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Uma vida feita a pulso

Nascera uma aldeia do Portugal profundo, como Diana costumava dizer. Há pessoas que nascem, crescem e morrem nelas. Sem que, alguma vez, vejam um mundo diferente. Acontecera isso com os seus bisavôs, depois com os avôs e teria acontecido com os seus pais se eles não tivessem escolhido melhorar de vida. E, no seu caso, melhorar de vida foi terem-se feito contrabandistas.
Dessa opção de risco e de ilegalidade beneficiaram os dois filhos que, através dela, correram o país - a profissão a isso obrigava - e, por mais estranho que pareça, com tanta mudança, conseguiram estudar.
Lourenço, o irmão, teve muita dificuldade em se adaptar à carreira dos pais. Era uma criança nervosa e que via polícias por todo o lado. Tornou-se um adulto sério, esforçado, mas sem ponta de criatividade.
Diana, ao contrário, só não seguiu as pegadas dos ascendentes, porque resolveu moldá-las em figurino diferente. Queria ser comerciante, ter loja com porta aberta e ganhar dinheiro. Começou por trabalhar para os outros. Depois de aprender os segredos do ofício, foi com uma amiga vender aos antigos clientes o que antes lhes vendiam os patrões. E, claro, mais em conta. Trabalhou muito e ganhou bastante. E um dia resolveu estabelecer-se. Alugou um vão de escada e passou a vender o contrabando dos pais. Com tal jeito que lhes branqueou a origem. Para isso, bastou-lhe a perícia de um amigo que trabalhava nas Alfandegas. Conseguida a legalidade da ilegalidade, faltava fazer o mesmo à origem e à educação. A primeira, transformou-a em titular dum palacete no tal Portugal profundo. Mais precisamente de Belfonte, que ninguém sabia onde ficava precisamente. Quanto à educação, a vida ensinou-a e aos poucos o vestuário, as peles e as jóias transformaram-na numa senhora. O ciclo estava acabado. Só lhe faltava poder social. Esse, deu-lhe o dinheiro que aplicou nas gentes que lho garantiriam. E, um dia ele veio ter consigo. Com medalha de bons serviços à nação e o título de comendadora. Só não viveu tempo suficiente para se tornar ministra. O que foi bom, porque isso lhe teria reduzido o prestígio!

Helena

O selo

Mariana e Miguel conheciam-se bem. A primeira era ciumenta por vocação e o segundo femeeiro por natureza. Continuavam casados apesar de várias crises, que tinham sempre por base as proezas sentimentais de um e as efabulações da outra.
A situação tornava-se por vezes irónica. É que eram os ciúmes de Mariana que despoletavam a atenção de Miguel por pessoas relativamente às quais ele nem sequer pensara fazer qualquer diligência amorosa.
Foi exactamente isto que aconteceu com Telma, uma belíssima espanhola, gestora, que viera fazer um estágio na empresa em que ele trabalhava. Mariana conheceu-a num cocktail e, a partir daí, não mais deu descanso ao marido. Tanto insistiu - contava ele, depois - que este passou a olhá-la não só como colega, mas como mulher.
Nasceu, assim, um novo interesse, algo que não sendo apenas amizade laboral, também se não podia dizer que fosse um "caso". Mariana, contudo, já dera ao assunto a sua coloração pessoal, pelo que a "outra" passou a ser objecto de algumas discussões.
Estava estabelecido que Telma deveria regressar a Espanha dentro de uns dias. Porém, antes do retorno, teve oportunidade e necessidade de fazer uma viagem de trabalho com Miguel.
Essa viagem marcaria uma viragem no relacionamento de ambos. Estavam sós, libertos, felizes, enfim, sentiam-se em clima de liberdade. E aí aconteceu o que Mariana entendia que há muito acontecera.
Foi um encontro físico intenso, apaixonado, relaxante, compensador. Para os protagonistas, um encontro importante.
À volta Mariana "sentiu" que algo se passara e quando pela centésima vez questionou o marido, este, surpreendentemente, contou-lhe a verdade. E a verdade é que ficara balanceado.
Estalou o drama. Mas, apesar disso, Miguel nada prometeu. Apenas disse que precisava de tempo. Mariana, por seu lado, conteve-se e apostou no facto de saber que a estagiária voltaria ao seu país. O que aconteceu, realmente, algum tempo depois.
Tudo parecia ter acalmado. Miguel voltara à sua tranquilidade habitual. Até que num quente dia de Agosto, Mariana entrou no carro do marido que tivera a atenção de a ir buscar ao cabeleireiro. Voltando-se para colocar a carteira no assento traseiro, viu qualquer coisa que lhe chamou a atenção. Era um selo. Quando lhe pegou viu o carimbo de Madrid e, no momento, invectivou o marido. Este, sereno, apenas lhe respondeu que iria à capital espanhola na semana seguinte...

Helena

quinta-feira, 24 de fevereiro de 2011

Outros tempos

Cresceram juntos, estudaram juntos, divertiram-se juntos. Casaram-se um com o outro. Diogo ria-se com a Rita, sua mulher, quando afirmava que também "... Casámos juntos".

Pertenceram à geração de Maio de 68 e sempre foram considerados de "avant garde".Gostavam do cinema francês da época, eram católicos progressistas e diziam-se personalistas, falando de Mounier como se de um amigo próximo se tratasse. Consideravam-se oposicionistas ao regime da altura e faziam parte dos chamados "grupos de casais", que eram a feição mais moderna da Igreja a que pertenciam.

Enfim, tinham tudo o que na época se entendia serem os ingredientes necessários para constituir a família exemplar. Tiveram três filhos, duas raparigas e um rapaz, que, pese embora terem sido educados com toda a liberalidade, haveriam de contestar, por sua vez, as opções paternas da época.

Teriam passado dez anos de casamento quando Diogo conheceu Marta, uns anitos mais nova do que Rita e Diogo. Era uma mulher vistosa, inteligente e culta que fora colocada no mesmo serviço hospitalar de Diogo. A amizade que começara com a aprendizagem do internato fortaleceu-se a ponto de terem tomado a decisão de constituírem uma sociedade para explorar um consultório. Tudo isto Rita acompanhava com o entusiasmo ingénuo de quem só pensa em consolidar a carreira do marido.

Mas na vida nem tudo corre como planeamos. Mesmo quando não queremos magoar ninguém. E aquela intensa vivência aproximou-os mais do que eles próprios esperavam ou quereriam. Mas o facto é que estavam apaixonados, sem que Diogo tivesse deixado de gostar de Rita.

Naquela tarde de Domingo em que a saída dos filhos os deixara sós, Diogo debatia-se no seu íntimo, sobre o que devia fazer relativamente ao problema que estava a viver. Ou seja e de modo muito cru, interrogava-se a si próprio sobre o que deveria fazer, sobre se deveria contar ou não, o drama que estava a viver. Porque se era isso que lhe apetecia – precisava da ajuda de Rita para tomar uma decisão -, também temia qual pudesse ser a sua reacção. E ele não queria, de facto, perdê-la.

Foi a mulher quem o interrompeu:

- Estás com um ar preocupado, Diogo. O que é que se passa?

- Não se passa nada Rita. Estou apenas cansado.

- Cansado de quê? Agora até tens menos trabalho. E até acabaste de fazer férias.

- Mas que queres? Ando cansado.

- Acredito. Mas não é do trabalho profissional, meu querido. É, sim da trapalhada da tua vida…

- Como assim? Que é que queres dizer com isso?

- Eu, nada. Tu é que devias perceber que ter duas mulheres, é um cansaço!

Helena

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

O gerânio

Aqueles montes isolados uns dos outros, que se alinhavam como se fossem as corcovas duma fila de camelos, encantavam o pequeno Jaime. Há vários meses que ele os via cobertos de neve e se sentava num velho cobertor a olhá-los. À sua volta, os bichos de capoeira lutavam por encontrar, debaixo do manto branco, qualquer coisa para comer.
Nem em casa havia restos que lhes matassem a fome, naquela aldeia do fim do mundo onde vivia com os avós já bem velhotes. O nosso herói tinha doze anos e se conseguia juntar as letras, era porque uma prima mais velha, que lá fora passar uns dias, lhe ensinara como elas se misturavam.
Depois, quando a camioneta da carreira passava lá em baixo na estrada, o senhor Joaquim, que tinha pena dele, deixava-lhe numa gruta da estrada, algumas folhas de jornais com que ele se ia treinando. Era o segredo deles.
Mas escrever, ele não tinha conseguido aprender, porque nem sempre havia lápis ou caneta para o fazer. No Verão ainda tentava com um graveto copiar as letras dos jornais. Contudo, nem sempre conseguia soletrar o que pretendia escrever.
O que ele sabia fazer bem era tratar dos animais. Duas galinhas, um galo e dois coelhos iam dando para a reprodução. As batatas e uma urtigas iam fazendo o resto da alimentação familiar. E sabia, também, tratar do gerânio que nascera dumas sementes que a prima lá deixara. Na Primavera falava com ele que, por isso, pensava, crescia a olhos vistos.
Só duas vezes fora à aldeia e apanhara uma sova dos avós por ter gasto num vaso, uma nica do dinheiro que era para a farinha.
Primeiro morreu a avó. Logo a seguir o avô. Foi ele que os enterrou. Jaime ficou só com os bichos e o gerânio grande empinado, agora, numa tigela onde antes se fervia a sopa.
O Inverno passou e numa manhã de Primavera o roncar de um carro parou à porta do casebre. Era um homem franzino que lhe disse ser da Assistência Social e que vinha ali para o levar, porque ele era menor.
Jaime não percebeu bem o que era ser menor. Ele sempre se achara de boa altura. Mas não queria sair dali porque, mentiu, "o avô fora à capital ver a filha e só vinha dali a uma semana".
- Mas o teu avô não morreu?
- Não senhor.
- E a tua avó?
- Foi com o meu avô ver a minha tia.
- Mas nós temos informação que eles morreram.
- Ah! Sim? E então em que cemitério estão? Só se foi em Lisboa.
- E a tua tia tem telemóvel?
- O que é isso?
O homem não continuou a conversa e julgou que o melhor seria lá voltar, mais tarde, com a polícia. Jaime bem percebeu o risco que corria. E, pela noite, atrelou o burrico à carroça, meteu-lhe dentro os animais que bem tentaram fugir e abalou. Tinha andado uns quilómetros quando parou e voltou atrás para pegar no gerânio grande. De seguida fez-se ao caminho.
Diz-se na aldeia, que naquele sitio, os gerânios crescem sempre fortes, lindos, cheios de cor!
Helena

terça-feira, 22 de fevereiro de 2011

O tesouro


A família Pimentel era oriunda do Alentejo e possuía características bem marcadas. Todos muito chegados constituíam um verdadeiro clã e tinham gala nisso. A casa estava sempre cheia de filhos, sobrinhos, primos e netos. Não havia refeição em que, à mesa, se não sentassem perto de vinte pessoas.
Depois da escola, era em casa da avó Joana e do avô José que os muitos netos se juntavam, atraídos pelos gostosos lanches que ali se faziam para eles.
De facto, nos princípios do século passado, era assim. As famílias eram numerosas e isso não constituía a surpresa de hoje em dia.
A avó era a grande matriarca da família e as grandes ou pequenas decisões de qualquer membro, não eram tomadas sem a sua prévia audição e concordância. Joana geria a vida de todos e ninguém parecia surpreender-se com o facto ou discutir, sequer, as suas opiniões.
Como detalhe, trazia sempre pendurada ao pescoço, num fio de ouro, uma minúscula chave que, dizia às crianças, seria da porta de uma caixa de prata onde ela guardava o seu tesouro. O qual viria a pertencer ao neto ou neta que melhor tratasse dela.
As crianças tornaram-se jovens adultos. Que encaravam a dita chave como o caminho para as libras de ouro que então se dizia ser a sua grande fortuna. E, claro, cada um deles pensava para consigo que seria o herdeiro de tão áureo património.
O tempo passou e uma noite Joana morreu. O desgosto foi sentido por todos. Mas a vida continuava e era preciso fazer partilhas. Ninguém ignorava que as disposições testamentárias se encontravam na mão do Dr. Trindade, o advogado e notário da região. Avisado do falecimento, reuniu os herdeiros e deu-lhes conta do que ficava para quem. A caixa seria entregue ao Nuno, o neto preferido e que era justamente o que menos se interessava por questões materiais.
Acabada a sessão a caixa foi aberta em frente de todos. Para surpresa geral, ela só continha as cartas de amor de Joana e José. O beneficiado foi alvo de uma galhofa geral. Mas não se importou.
Já no silêncio do seu quarto deliciou-se a ler aquelas epístolas. Para sua admiração, dentro de uma delas vinha um pequeno papel que lhe era dirigido e em letras vermelhas um código, com indicação de contactar o Dr Trindade. Este estava encarregado de lhe dar quando ele o pedisse, ou, ao fim de um ano, se tal não acontecesse, uma carta lacrada que o encaminharia para um cofre, cujo código de acesso era o que ele possuía.
O conteúdo do mesmo era variado. Porque, para além de libras, havia títulos de propriedades que a família desconhecia!

Helena

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2011

O jantar

Fátima e Tiago estavam casados há pouco tempo. Ambos trabalhavam na mesma empresa e chefiavam departamentos. Mas ele saía do país com bastante mais frequência do que ela.
Um dia o seu serviço foi encarregue de preparar a deslocação a Lisboa de uma missão fancesa que viria discutir um acordo com o departamento do marido. O programa foi combinado entre os números dois dos serviços que ambos chefiavam.
No final do encontro, Fátima chamou o seu homem de confiança, que lhe fez um relato técnico de tudo. Mas relativamente aos participantes pouco ou nada adiantava. Até que a chefe lhe disparou:
- Então e as senhoras eram bonitas? Gostaram de ir aos fados?
- Gostaram sim. Gostaram muito.
- E os homens?
- Quais homens?
- Os da missão, criatura. A delegação não era mista?
- Ah! Sim, também gostaram.

Fátima percebeu que ali havia gato e que o seu funcionário estava a esconder qualquer coisa. Esperta, pediu as fotos do evento. E reparou no cobiçoso olhar que, em quase todas elas, o seu marido deitava a uma das participantes. Não disse nada mas ficou mais atenta. Desde então, nem telefone nem pasta, jamais foram deixados ao abandono.
No mês seguinte nova viagem levava o marido a Paris. Ela bem viu a satisfação com que ele recebeu a notícia. A qual ainda era mais evidente quando ele voltou.
Esse foi o sinal. Comprou um telemóvel igual ao do marido e num momento de distração trocou-os. Nessa madrugada, desfez a troca, mas ficou com o registo do número, que com a pressa ele se esquecera de apagar. Teve sorte.
No dia seguinte ligou e disse quem era. Do outro lado, Anne Marie, completamente surpreendida, relatava-lhe a história rocambolesca que Tiago lhe contara.
De facto não escondera que era casado, mas acrescentara que a mulher, muito mais velha do que ele, andava numa cadeira de rodas e tinha uma grave doença que lhe dava um curto período de vida. Era por isso ele não se divorciara ainda...
Enfim, no meio do ridículo da situação, a francesa só exclamava " mais c'est du roman photo!". Uma vez esclarecida, de forma muito educada, perguntou a Fátima quem ela entendia que deveria esclarecer Tiago. "As duas", disse Fátima.
E explicou-lhe o plano. Como teria que ir brevemente com o marido a Paris, convidá-la-ia para um jantar surpresa ao latin lover.
E assim foi. Inenarrável o encontro dos três. Porque o único que conhecia ambas era Tiago que, mal viu Anne Marie no restaurante, disse que se estava a sentir mal...
Claro que ambas as mulheres se prontificaram a deixá-lo no hotel. E elas... foram jantar juntas.
Fátima já se divorciou. Anne Marie já se casou. E desde então, pelo menos uma vez no ano, em Portugal ou em França, elas estão juntas!
Helena

domingo, 20 de fevereiro de 2011

A intimidade dos Pais

Nunca conhecemos bem os nossos pais, pensava Deolinda depois de ter arrumado a última gaveta dos objectos pessoais daquele que lhe dera a vida. No meio da sua tristeza pela perda que acabara de sofrer, também sentia um misto de pasmo e de irritação pelo que, sem querer, lhe tinha vindo parar às mãos.
Os pais haviam-se divorciado quando eles eram pequenos. Deolinda não tinha qualquer lembrança deles enquanto casal. O irmão, Marcelo, ao contrário lembrava-se bem e havia sofrido muito com a separação paterna. Ele ficara com o pai e a irmã ficara com a mãe. Mais tarde, quando a mãe se voltou a casar e teve que ir com o marido para o estrangeiro, haviam de voltar a juntar-se na casa paterna. De facto, por causa dos estudos, o pai, nessa altura, tomou conta de ambos.
Marcelo inteligentemente delegara na irmã tudo o que dizia respeito aos bens paternos, seguro que estava, de que Deolinda jamais o enganaria. E também se libertava, está de ver, de uma série de trabalhos que a morte dos próximos sempre acaba por trazer àqueles que ficam vivos.
Tudo correra bem na constituição dos lotes para dividir.
O problema surgiu quando foi necessário chegar às coisas que o progenitor guardara, sem se perceber bem porquê, e que respeitavam à sua intimidade. Acontece com frquência àqueles que parece que nunca estão preparados para morrer.
Naquele gaveta havia de tudo. Postais, fotos, cartas, pautas musicais, bilhetes de espectáculos, um carcol de cabelo, enfim, um mundo que Deolinda nem sequer julga pudesse caber na imagem contida que tinha do pai. E, num grupo aparte, encontravam-se três embrulhos. Um constituído por cartas que a mãe escrevera ao marido; outro por cartas que a avó enviara ao filho e dois cadernos com histórias eróticas, cuja letra não deixava qualquer dúvida sobre o autor das mesmas. Finalmente, um diário com fechadura.
Deolinda nem queria acreditar que aquele pai severo, exigente e até seco, pudesse ser o autor daquilo que estava ali à sua vista. Hesitou em compartilhar com Marcelo o que descobrira. Depois decidiu que não o faria. Iria queimar tudo.
Mas não resistiu a ler uma carta escrita pela mãe. Não conseguiu acabá-la. Era demasiado íntima. Voltou a dar um laço na fita que desatara e resolveu que aquelas iriam para as mãos de quem as escrevera.
Faria a entrega no dia seguinte, pensou. Mas dormiu mal nessa noite. E, ao fim da manhã, dirigiu-se à casa materna e entregou à autora as ditas epístolas.
- Leste alguma?
- Li uma, mãe. Mas nem sequer a acabei.
- Fizeste mal, Deolinda. A intimidade dos pais só a eles pertence!
- Tem razão mãe.
- Então faz o que o teu Pai devia ter feito. Desfaz-te em vida do passado que morreu!

Helena

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

As duas irmãs


Eram duas irmãs tão parecidas, em crianças, que quase se diria serem gémeas. Gostavam das mesmas coisas, tinham os mesmos amigos, e na escola embora frequentassem classes diferentes, andavam sempre juntas. Os pais chegavam a zangar-se por elas não saberem fazer nada uma sem a outra.
Mas com o passar dos anos aconteceu justamente o contrário. Foram crescendo e então começaram a diferenciar-se muito. Tanto, que já ninguém as confundia e até questionavam como é que duas irmãs podiam ser tão diferentes. Nem os próprios pais conseguiram perceber bem o que se passara.
Cada uma havia de seguir, nesta nova fase, uma carreira profissional bem diversa também. Alexandra seria médica e Adelaide fez-se engenheira. Os amigos e os interesses passaram igualmente a ser muito distintos.
Como seria de esperar em qualquer família normal, acabaram ambas por querer ter a sua própria casa. O que teve como consequência separa-las ainda mais. De facto, duas carreiras muito absorventes, faziam com que só muito esporadicamente se encontrassem ou mesmo reunissem em casa dos pais. Estes bem estimulavam esses encontros mas, por uma razão ou por outra, era sempre muito difícil reuni-las.
Numa tarde em que Alexandra foi visitar os pais estes disseram-lhe que Adelaide tinha arranjado um namorado, mas que ainda ninguém o conhecia. Era um colega e chamava-se Miguel. Pouco interessada no tema, a filha não fez perguntas e a conversa morreu por ali.
Quase um ano decorrido foi a vez de Adelaide saber pelos pais que a irmã havia, finalmente, encontrado alguém com quem decidira partilhar a sua vida. Porém, não queria casar.
Com as dificuldades tradicionais, Adelaide marcou o encontro para apresentar o noivo à família. Tudo decorreria num jantar para o qual ela pedira que todos estivessem presentes. Sugeriu mesmo, que se Alexandra quisesse, seria uma boa oportunidade para ela dar a conhecer o homem com quem partilhava a vida há perto de um ano. Mas ela não não se mostrou interessada.
O choque deu-se quando ambas as irmãs esperavam o aparecimento de Miguel que ficara de ir ter a casa dos futuros sogros. É que quando este bateu à porta, as duas correram, em simultâneo, para o mesmo homem...


Helena

quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011

Quem com ferros mata...

Clara estava desesperada. Acabara de confirmar que João tinha outra mulher na sua vida. Não sabia se era ou não uma coisa séria. Sabia apenas que estava a correr riscos de o perder e não sabia o que fazer perante esta nova realidade.
A raiva e a tristeza estavam a apoderar-se dela. É claro que, ao menos agora, deixara de ter dúvidas e passara a ter certezas. Mas eram certezas muito dolorosas. Vira-os a beijarem-se no carro. E em moldes demasiadamente esclarecedores.
Clara relembrou o que lhe dissera a sua mãe quando eles casaram. "Toma cautela filha. Ele é muito mais novo do que tu. Agora estás apaixonada e ele também. Mas daqui a uma década, os vossos doze anos de diferença contarão muito mais. Fala-te quem já viveu muito. Um dia vais perdê-lo para uma mulher mais nova e nessa altura a tua fragilidade será maior e a tua capacidade de reagires será menor. Para além de, como sabes, ser natural que ele queira ter mais filhos e tu já não estares em idade de correres esse risco. Pensa bem".
Ali estava ela, onze anos decorridos, e quase com cinquenta, casada com um homem que estava
no esplendor dos seus trinta e oito anos, enlevado por uma garota com a idade dos seus filhos.
Nem conseguia conduzir, tal a força das lágrimas que lhe corriam pelo rosto. Que falta lhe fazia, naquela altura, o pragmatismo materno.
Não conseguiu ir para casa. Foi ter com o seu irmão António, que era aquele com quem ela se abria sempre, desde a morte da mãe. Ele ouviu-a com toda a atenção e disse-lhe: “o que eu devo dizer-te é que te acalmes. E que penses que aquilo que o João agora está a fazer foi o que, afinal, tu também fizeste, quando decidiste ficar com ele. Ambos estão no mesmo patamar.
A diferença é que ele agora está casado contigo e nessa altura estava casado com a Teresa.
Só tens duas soluções. Ou esperas, como a Teresa esperou, apesar de o ter perdido para ti. Ou não és capaz disso, separas-te e entrega-lo de mão beijada a essa sua nova paixão.
Tudo o resto são fantasias. Só tu é que sabes a força que tens”.
De repente, Clara percebeu. Doía, mas sabia que o irmão tinha razão.
Voltou para casa e recebeu o marido com a melhor disposição sabendo que, quem com ferros mata, com eles pode morrer…

Helena

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Inesperadamente...


A ideia de começar as férias numa quinta maravilhosa, a uns escassos quilómetros da capital, faz com que Marta nem se lembre dos quilómetros que terá de conduzir por uma estrada que é difícil.
Mas o ano foi tão cansativo, as viagens foram tão frequentes, os jantares e almoços de trabalho tão desgastantes, que ela só quer fazer uma paragem total. Serão trinta dias seguidos longe do ruído da cidade, dos telemóveis, dos mails e, sobretudo, das reuniões em série. Mas no preciso momento, em que mal tinha acabado de sorrir a esta perspectiva, a luz e o som do telemóvel deram sinal.
Ainda hesitou em atender. Só podia ser trabalho, pensou. Mas, depois, admitiu que fosse algum dos filhos ou o marido, que ficara de chegar nessa mesma noite.
Com certa relutância acabou por responder. Era a secretária a avisá-la “que tinha havido uma alteração na vida do Senhor Engenheiro, que já não podia chegar nessa noite, e que precisava da presença da Senhora Arquitecta, em Paris, no dia seguinte. Não sei se fiz bem ou não, mas permiti-me marcar já o voo, para o avião que sai mais cedo amanhã”, acrescentou.
De há dois anos para cá, nada havia de rotineiro, na sua vida. Pelo contrário, cada dia era uma completa incerteza, apesar de tudo ter feito para que a serenidade e a pacatez fossem a sua forma de envelhecer.
Tinham comprado aquela pequena quinta, lindíssima, para poderem disfrutar juntos, todo o tempo livre de que dispusessem. E, sempre que era possível, fugiam para lá, onde se escondiam do mundo e viviam um para o outro, raramente saindo do seu canto. Os amigos davam-lhes imensas piadas por este amor tardiamente encontrado, mas eles riam-se e continuavam a viver como gostavam.
É certo que tinham um tipo de trabalho muito intenso, e passavam algum tempo separados. Mas qualquer deles sabia disso quando decidiram partilhar a vida. E, curiosamente, ambos achavam, ideal a sua situação. Não estavam nem demasiado tempo juntos, nem excessivamente afastados.
Era tudo “quanto baste”, e o gosto que cada um tinha nos reencontros compensava, amplamente, a pena das curtas separações.
Só que a ida de Francisco para Paris, embora fosse apenas por dois ou três anos, viera alterar, um pouco, o equilíbrio de que antes usufruíam. Não se consegue ter tudo, pensava Marta na mesa de um café de estrada, antes de retornar a Lisboa.
Pagou, saiu, entrou no carro e a meia voz exclamou “só eu”. Mas depois, a sorrir, acrescentou “só eu e aquele louco”.
Pegou no telefone e falou para o filho mais novo. “Alteração de última hora: sigo directa para Paris”, arriscou.
Do outro lado do fio, uma risada sonora e “vocês são completamente doidos”. Ainda se lembra de, mesmo antes de desligar, Pedro ter acrescentado, com voz sibilina “foste tu que falaste em férias? Julgo que sim mas, claro, isso é para gente normal, esqueci-me que se tu não existisses terias, mesmo, que ser inventada”.
O choque brutal, de frente, quase desfez o carro. O corpo teve que ser desencarcerado. Marta mantinha o telemóvel fechado nas suas mãos…

Helena

Uma história surpreendente

A história que vos vou contar ouvi-a num consultório médico onde aguardava a minha vez. À minha frente encontrava-se um casal de certa idade. Ele um homem que me parecia ter à volta de sessenta e cinco anos. Ela seria senhora de setenta e tais, muito bem arranjada e com uns lindos olhos azuis. Pouco falavam e cada um lia um livro. Em dois outros cadeirões sentavam-se duas raparigas em animada conversa uma com a outra.
"Faz favor de entrar Senhora D. Isabel" disse Ana, a empregada.
O casal levantou-se e dirigiu-se para a sala do médico. Foi nesta ocasião que uma das raparigas contou à outra a história que se segue.
O casal era apenas mãe e filho. A senhora tinha oitenta e quatro anos. Ficara viuva há uma década de um marido que, não sendo propriamente despótico, nunca a deixara ser quem era, mas sim e apenas, quem ele queria que ela fosse. Desse casamento haviam nascido três filhos. E destes uma meia dúzia de netos.
Passados dois anos sobre a morte do marido, portanto com setenta e seis anos, decidiu reunir filhos e netos para lhes anunciar que encontrara alguem que considerava especial e que tomara a decisão de viver esse encontro da melhor maneira, ou seja conforme as regras que ambos estabelecessem. Os filhos, atónitos, nem reagiram.
Mas Isabel ali estava para provar a inteligência da sua opção. Que vivia, encontrando-se com o homem que amava, todos os fins de semana, num hotel. Juntavam-se à sexta feira ao fim da tarde e separavam-se no Domingo, à mesma hora.
E, para celebrar o encontro, todos os anos faziam uma viagem romântica ao estrangeiro, aos locais que desejavam visitar em conjunto.
Resta acrescentar que o protagonista masculino deste romance, igualmente viúvo tinha, quando a encontrou, setenta e dois anos, portanto menos quatro do que Isabel. Ambos eram pessoas cultas, interessantes e com formação universitária.
Vai para nove anos que este "amor" se mantém e, diziam as jovens, nada parecia abalar o que ambos sentem um pelo outro!
Quando saí do consultório quem estava surpreendida era eu. Porquê? Porque conheço, felizmente, alguns casos como este. Mas a solução aqui encontrada é que, reconheço, é verdadeiramente surprendente!

Helena

segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

O "meu" Porto

Gosto imenso do Porto, das suas gentes, do seu modo de falar e até não desgosto do clima se o puder temperar com uma casinha bem aquecida. É verdade que não aprecio chuva. Mas em compensação a neblina portuense faz as minhas delícias.
O meu Porto talvez tenha pouco do que é tradicional referir quando se fala dele. Para mim, que durante cinco anos lá vivi dois dias por semana, o seu lado turístico foi o que menos explorei. Aquilo que me encantava de verdade era passear na Foz, andar em Santa Catarina, parar no Café Magestic para beber um cimbalino ou mesmo um bom chá com torradas, mais à tarde, almoçar uma francesinha em qualquer dos pequenos restaurantes que pululam pelos seus cantos e deambular, a pé, pelas ruas da cidade, até entrar na Lello, uma das mais bonitas livrarias que conheço. E aí, verdadeiramente, extasiar-me.
Noutro dia poderia parar no café Guarany, na Avenida dos Aliados, beber um duplo e preparar as pernas para passear em Serralves, encher os pulmões de ar e descansar. Depois, partir para a Casa da Música - considerada uma das salas com melhor qualidade acústica, senão a melhor - ou para o Museu de Arte Contemporânea. E, se ainda houvesse coragem e programa que me satisfizesse, não deixaria de dar um pulo ao Teatro Rivol ou ao S. João.
A alternativa a tudo isto é caminhar pelo centro histórico do Porto e perceber como uma parte importante da nossa existência como país, tem ali as suas marcas. E aqui vale a pena deixar que o nosso coração bata ao ritmo dos nossos olhos.
Mas atenção, falta aqui referir senão o mais importante, pelo menos, o mais agradável, que é passar umas horas a fazer compras nas boas lojas da capital nortenha ou num dos seus grandes centros comerciais, onde poderemos sempre ter algumas gostosas surpresas.
Este é o roteiro abreviado do meu Porto, aquele que nunca me cansa revisitar. Mas se só lá for por uma ou duas horas, basta-me passear pela Foz para me sentir completamente retemperada!

Helena

domingo, 13 de fevereiro de 2011

Conversa de combóio

Durante cinco anos fui dois dias por semana ao Porto dar aulas na Universidade. A maior parte das vezes, deslocáva-me de combóio. Outras, ia de carro.
Durante todo esse tempo conheci lugares, gentes, e amigos. Nunca me pesaram as viagens e esses dois dias representavam uma espécie de libertação de um quotidiano à época muito ligado a Lisboa. E, de algum modo, nessas idas e vindas foram-me sempre acontecendo episódios. Uns mais caricatos. Outros menos. Outros até comovedores.
Numa dessas viagens conheci - melhor, ficou no banco à minha frente e virado para mim - um homem com quem tive a curiosa conversa que reproduzo:
- Porque é que a senhora vai sempre a ler ou a escrever?
- Sempre?!
- Sim, sempre. Há meses que tomo este combóio e que a observo.
- Bom, leio porque gosto. Escrevo porque é esse o meu trabalho.
- Então é escritora?
- Não. Gosto apenas de escrevinhar. Mas sou economista.
- Economista?! Mas o que é que leva uma mulher a interessar-se por economia?
- Naturalmente a falta que ela faz. Ou, se preferir, uma qualquer patologia...
- Acha que a economia é uma ciência?
- Acho que sim. Não é exacta, mas é uma ciência.
- Eu sou jurista e não considero o Direito uma ciência. A dra acha?
- Nunca pensei nisso. Mas tenho familiares juristas, que dizem haver uma ciência jurídica.
- Se a Economia e o Direito fossem realmente ciências, o mundo seria mais equilibrado.
- Só se essas áreas não estivessem, como estão, sujeitas à política.
- Tem razão. Então deduzo que não gosta de política.
- Deduz mal. O que não gosto é de políticos!
- Ah! Mas porquê?
- Iso seria uma longa história...
- Mas algum político a tratou mal?
- Não. Mas bem é que eles não me tratam...
- Eu sou político
- Azar o seu. Então para fim de conversa, sempre lhe digo que já dei ao país, os três que lá tinha em casa!
- Mas...
- Mas mais nada, meu caro senhor porque, como já sabe, tenho que ler e escrever. E, repito... não aprecio políticos!

Várias vezes fiz este trajecto. Várias vezes vi o meu interlocutor. Várias vezes fugi dele. Mas de uma decisão vital ele foi o responsável. É que nunca mais viajei nos bancos que tinham mesa. Pelo menos desses, curei-me por completo!
Helena

sexta-feira, 11 de fevereiro de 2011

Encontros fortuitos

Eram ambos burgueses de classe média alta. Conheceram-se no estrangeiro, no fim do século passado, durante uma reunião de trabalho, em Bruxelas. Estavam em lados opostos das respectivas barricadas. Ele francês, ela portuguesa. Irritaram-se, por várias vezes, durante as negociações. Mas no final ela saíu vitoriosa.
Decorridos uns meses, foi necessário renegociar. No mesmo local, o mesmo acordo. Nessa altura, por mero interesse de oportunidade, ambos defendiam o mesmo projecto, que foi aprovado. Ambos saíram, portanto, a ganhar.
Xavier estava contente e apetecia-lhe celebrar o sucesso da proposta conjunta. Perante o convite de Xavier para jantar, Alda resolveu aceitar. A refeição foi agradável e permitiu-lhes estabelecer um clima de agradável cordialidade. E até de alguma intimidade, que os levou a falar das suas vidas.
Ele era casado com uma americana e tinha dois filhos adolescentes. Não era feliz, mas mantinha o matrimónio que, pelo menos, tinha virtude de o não incomodar e permitia aos filhos certa estabilidade familiar
Ela era casada também. Não tinha filhos e o marido um economista obcecado pela profissão, dava-lhe, por isso, grande liberdade para o exercício da sua vida profissional. Não era infeliz mas a relação era morna e estava longe daquilo com que sonhara.
Disto tudo falaram concluindo estarem ambos em condições propícias a que alguém, um dia, fizesse uma fractura em qualquer das uniões.
A reunião acabara a uma sexta-feira e Alda tinha decidido voar de Bruxelas para Paris no dia seguinte. Xavier que trouxera carro e vivia na capital, desafiou-a fazer com ele a viagem de volta. Alda aceitou. A meio do percurso resolveram parar para comer, num pequeno hotel de charme.
Nem um nem outro sabem explicar o que os levou à loucura de lá ficarem. Mas fizeram-no conscientemente. E foi muitíssimo prazeirosa a decisão.
Retornados a Paris, Xavier levou Alda ao aeroporto. Pouco falaram. Mas por uns minutos não se largaram abraçados um ao outro.
Hoje Alda, passados cinco anos sobre este acontecimento, retorna a Bruxelas para outra reunião. Pergunta a si própria se Xavier estará lá e que reacção terá. Estava, de facto.
Voltaram de novo juntos para Paris. Pararam no mesmo hotel e de novo resolveram lá ficar. Mais uma vez com muito gosto. De novo foi no aeroporto que se despediram. E, longamente se abraçaram. Há pequenas felicidades assim na vida de todos nós!

Helena

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

A surpresa

A rapariga era ambiciosa. Não sabia bem o que queria. Apenas sentia que não queria levar toda a vida naquela zona afastada do mundo, onde a juventude era escassa.
Tudo começou com a instalação de televisão na aldeia beirã. Foi por seu intermédio que Graça começou a perceber que havia gente diferente dela e formas de vida que nada tinham a ver com a sua.
Depois, a vinda a férias dos primos emigrados em França, na Suiça e no Luxemburgo, fizeram o resto, ou seja, marcaram ainda mais a sua incipiente vontade de partir. E se bem pensou, melhor o fez. Aproveitando a estadia na terra de uns senhores de Lisboa a quem a mãe prestava, de forma episodica, serviço doméstico, insinuou-se junto da filha dos patrões, Matilde, que tinha a mesma idade e conseguiu que os pais autorizassem a sua vinda para a capital. Tinha quinze anos quando chegou.
Foi uma revolução na sua existência. Viera para ajudar na casa, mas o que mais lhe agradava era perceber o que Matilde aprendia. Acabou, ao fim de alguns meses, por ter autorização para estudar à noite, no liceu em frente da casa onde viviam. Nada lhe dava mais gosto e, no fundo, até beneficiava a amiga, menos dada aos estudos.
Os anos decorreram tranquilos e Graça aprendeu tudo o que na aldeia jamais teria podido saber. Não foi só o saber. Foi tambem uma outra forma de viver. E de ter ambições.
Terminado o liceu punha-se o problema da Faculdade. A menina de família só pensava em casar. A garota da aldeia só pensava em estudar. Foi aí que o problema surgiu. Porque os senhores não podiam - ou não queriam - ter em casa uma empregada que lhes ultrapassasse a filha em instrução.
Sábia, Graça compreendeu. E aos vinte anos decidiu trabalhar a dias e continuar a estudar. Alugou um quarto miserável, passou dificuldades. Mas foi conseguindo melhorar de profissão, viver num quarto melhor e terminar o curso. Fez-se, finalmente, advogada.
Tinha já sete anos de profissão, quando um colega lhe mandou um caso de divórcio de que ele se não podia ocupar por ser amigo de uma das famílias. Tratava-se de um engenheiro cujo casamento durara apenas dois anos. Tudo apontava para algo sem complicações.
No dia em que recebeu o novo cliente ouviu as suas razões e resolveu aceitar o caso. Na altura de pedir os elementos, é que veio a grande surpresa. O seu cliente era, nem mais nem menos, o marido de Matilde.
Percebendo que algo se passara, o engenheiro manifestou-se e inquiriu sobre se havia algum problema. "Problema nenhum" respondeu a advogada.
Surpresa teve Matilde, quando soube que quem ia defender o futuro ex-marido era a sua antiga empregada!

Helena