quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O castigo


A história passa-se nos anos sessenta. Natália e Vasco viviam com a mãe em casa dos avós, depois de um divórcio que, na época, não havia sido simples para ninguém. A garota tinha seis anos e o rapaz tinha doze.
A família materna, oriunda de uma média burguesia, encarou aquela situação de forma um pouco dramática, o que não admira muito, face aos valores da sociedade de então.
De facto, divórcios não eram correntes na altura e, por isso, a matriarca decidiu que o trio familiar deveria retornar à casa paterna e aí levar uma vida recatada para calar as más línguas.
Mas Rita, a jovem mãe, tinha trinta anos e não esperava, nem queria, ficar sozinha o resto da vida. Era uma mulher atraente que casara aos 17 anos com um homem com o dobro da sua idade e que se sentia com o direito a viver.
Por isso, quando, dois anos depois, conheceu Armando que, curiosamente, era uma década mais novo que ela, não se fez rogada aos seus avanços. Estes viriam a concretizar-se numa vida em comum - um escândalo - meses depois.
As crianças, essas, ficaram a viver com os avós. Mas o pai delas quis, alguns meses depois, ter o rapaz consigo, argumentando que considerava importante que um adolescente tivesse a seu lado uma figura parental, para poder ter um desenvolvimento psicológico saudável E o juiz deu-lhe razão.
Assim os irmão ficaram separados. Mas não foi por muito tempo. Com efeito, Rita, entretanto, casara com o companheiro e ambos foram para França, onde este último fora colocado.
Para prosseguir os estudos, Natália acabou por se juntar ao irmão e ir viver para a casa paterna.
Não eram infelizes. Pelo contrário, diria até que tiravam da situação o melhor partido. O pai e a mãe não se digladiavam e o padrasto, que tinha por eles grande estima, acabava por ser o elo forte na ligação de todos.
Os anos foram decorrendo. Rita vinha regularmente a Portugal ver os filhos. Armando preferia ficar em Paris, uma vez que a sua família original, muito pequena, já havia desaparecido.
Vasco acabou o curso e foi, por sua vez, para o estrangeiro. Natália entrou para a Faculdade.
Ia fazer dezanove anos quando recebeu um telegrama da mãe a dizer que o padrasto viria a Lisboa em serviço e lhe pedia que o fosse buscar ao aeroporto. Desencontraram-se, porque nenhum deles se reconheceu.
Chegada a casa dos avós, Natália teve uma forte emoção. O padrasto não lhe ficou atrás. Ambos se sentiram imediatamente atraídos um pelo outro.
Ele deixara-a uma miúda e encontrava uma mulher. Ela deixara de ver nele o marido da mãe e estava face a um homem de trinta e poucos anos extremamente atraente. Foi uma espécie de coup de foudre.
Os dias que se seguiram, de convivência diária, só acentuaram uma situação que ambos sabiam perversa, mas cujo controle lhes estava a fugir das mãos.
De um lado, o desejo mútuo de um homem por uma mulher e, de outro, uma relação familiar colateral que proibia qualquer forma de contacto físico entre ambos.
Um dia a corda ia ceder, o desejo ia tomar forma. Natália decidira encontrar-se com Armando no hotel onde este se encontrava hospedado. Salvou-os um AVC. Um AVC provocado, como terá dito o médico, pelo stress do paciente, por alguma tensão a que estivesse submetido.
Armando nunca mais voltou a ser o mesmo. E Natália ainda hoje considera que foi castigo divino...

Helena

domingo, 27 de novembro de 2011

Uma mulher livre


Susana era uma mulher livre. Dez anos como hospedeira de longo curso fizeram dela uma pessoa com mundo, com interesses e com perspicácia.
Sabia que a carreira tinha duração limitada e que quando as primeiras rugas ou sinais de cansaço aparecessem, o seu destino seria a terra. Não aquela que a havia de comer, mas sim de um balcão a atender clientes que lhe iriam fazer sempre as mesmas perguntas.
Por tudo isto, queria chegar depressa a chefe de cabina, pois sabia que seria nos frequentadores masculinos da classe executiva que o seu destino se poderia jogar.
Assim nunca se fez rogada a jogos de cintura ou de corpo para atingir o topo da carreira antes de tempo. Um sorriso ao Comandante ou uma réplica mais ousada levaram-na ao director que decidiria - e bem - da sua promoção.
Ei-la com vinte e nove anos, num voo para os Estados Unidos da América. O segundo passageiro a entrar, entregou-lhe o sobretudo de cachemira. A ela pareceu-lhe o protótipo adequado. Não usava aliança e falava um inglês quase perfeito. O tipo físico lembrava o de um egípcio, mas a tez era mais clara.
Levou-lhe o champagne e perguntou-lhe se desejava algo mais. "Por enquanto não", foi a resposta. Mais tarde sim. Talvez você. Tudo expresso com a maior seriedade, sem que um músculo do rosto se movesse.
Nada mais se passou. Nada mais foi pedido. A bela hospedeira bem circulava. Mas nada. Nem reacção.
Quando aterraram e ela lhe ia devolver o casaco ele entregou-lhe um cartão de visita e foi-se embora. No dito estava um nome em caracteres que não conhecia e um nome em inglês do outro lado, onde, à mão estava escrita uma morada.
Susana, já fardada, hesitava. Deveria ir para casa ou dirigir-se ao que pensava ser um hotel? Tardou uns minutos e decidiu-se pela última hipótese. Era um hotel de luxo.
Quando se preparava para, na recepção, indagar pelo cavalheiro, um dos boys do bar veio ter com ela para lhe dizer que a esperavam no bar.
Foi uma noite esplêndida. Apenas interrompida, às cinco da manhã, pela polícia que irrompeu pelo quarto e o levou preso. Era um traficante de carne branca há muito procurado pela polícia...
Não foi nada fácil convencer as autoridades que ela fora, apenas, a companhia de uma noite. E quando o conseguiu, estava colocada como hospedeira de terra!

Helena

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

As palavras por dizer


Catarina nunca fora uma pessoa fácil. Tivera uma educação muito severa marcada por um pai tardio e uma mãe com metade da idade do marido, a qual fora, por sua vez, preparada para ser apenas a mulher de alguém e a sua dona da casa.
Ambas, mãe e filha, sempre desejaram ter uma vida diferente da que levavam e, talvez por isso, o seu relacionamento não era o melhor. Catarina culpando a progenitora da sua insatisfação. E esta última considerando que era por causa da filha que não tinha a coragem de romper com o seu modo de vida.
Uma fez-se mulher e a outra envelheceu. Em mundos separados que ambas desejavam juntar, mas sem nenhuma ser capaz de dar o passo.
Chegou a vez de Catarina dividir a sua vida com um colega de trabalho. E, por mais surpreendente que possa parecer, a escolha do companheiro recaiu sobre um homem que parecia ser o fiel retrato do pai que lhe coubera.
Talvez consciente desse facto, quando Inês nasceu, a mãe prometeu a si própria que a relação entre ambas seria diferente daquela que ela havia antes experimentado. De facto, tentou que assim fosse. Mas não conseguiu.
Inês parecia só gostar da avó materna, com quem mantinha um contacto muito próximo.
Quando esta morreu, a neta sentiu que lhe faltava o chão. Perdia o seu grande sustentáculo, a sua maior amiga, aquela a quem tudo contava. No fundo aquela que gostaria de ter tido como mãe.
E quando, num dia, Catarina fez uma derradeira tentativa de se aproximar da filha, esta reagiu, retorquindo que era tarde para as palavras que haviam ficado por dizer...
De facto, nem sempre é fácil sabermos qual o caminho escolher!

Helena

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A echarpe


Antónia tinha nas mãos uma echarpe vermelha, mescla de lã e seda de grande qualidade.
Uma lágrima furtiva corria-lhe pelo rosto. O pensamento, esse, voltara vinte anos atrás quando, adolescente ainda, vivia fascinada pela mãe que tinha. Ou melhor, pela forma como ela se vestia e se apresentava. Para uma garota adolescente que era considerada o patinho feio da família, a figura materna era a referência absoluta.
Mas comecemos pelo princípio. Antónia tinha uma irmã um pouco mais nova e dois irmãos mais velhos. A mãe, divorciada, tinha 47 anos e já apaziguara os ódios da separação. Trabalhava e pretendia refazer a sua vida com alguém que lhe permitisse um upgrading social e financeiro.
A família acoitara-se no lar dos avós maternos que, não sendo ricos, tinham as reservas de uma vida contida pela experiência de quem atravessou a guerra.
Era este o ambiente em que a protagonista ia crescendo. Não era infeliz, mas vivia na ansiedade de se parecer com a progenitora.
Um dia, Ivone resolveu reunir os filhos para lhes participar que ia casar de novo. Nada que os surpreendesse. De facto, sempre esperaram que tal acontecesse.
No início continuariam em casa dos avôs e, mais tarde, quando o novo lar estivesse pronto, iriam para lá. O padrasto, advogado de posses e sem descendência, não se opunha. Até fazia gosto.
Mostrou-lhes, na altura, entusiasmada, a lindíssima echarpe que ele lhe havia oferecido e que ela colocara à volta do pescoço, a embelezar o tailleur que vestira para ir a um concerto.
Horas depois desta conversa, a trágica revelação. Ivone havia morrido asfixiada pela echarpe que se havia prendido numa das rodas do descapotável que dirigia e que pertencia ao futuro marido.
Antónia limpou a lágrima furtiva e voltou a guardar a echarpe assassina...

Helena

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Uma questão de confiança


Conheceram-se na escola primária. Ela loira, olhos claros, despachada e com vontade bem firmada. Ele moreno, olho escuro, trigueiro, pacato.
Ambos bons alunos e interessados em aprender. A família do António viera de África, a quando da descolonização. A da Deolinda natural do Algarve, nunca de lá tinha saído. Gente modesta de ambos os lados, foi aqui que as duas famílias se encontraram.
Nada os destinaria um ao outro, a não ser o facto de terem feito escolhas curriculares semelhantes. Da escola passaram ao liceu - sim, quando tudo se deu ainda havia essa instituição, hoje ultrapassada pela Escola Secundária -, e deste à Universidade. Um e outro haveriam de escolher medicina.
Foi nesta rota que a amizade se estreitou e a decisão de unirem futuros se começou a esboçar.
Com efeito, no último ano resolveram fazer economias e juntarem-se na mesma casa. Aliavam, assim, o útil da partilha do teto - com o respectivo encaixe da receita -, ao agradável da partilha dos corpos. E, podiam até dar-se ao luxo de perceberem se, perante as diferenças respectivas, o que os unia era sólido. Não o foi, como se vai perceber. Ciúme e desconfiança corroem os alicerces mais rijos, como se sabe.
A relação manteve-se durante uns anos, mais concretamente até terem garantido o trabalho de cada um. Foi, então, que pensaram dar outra dimensão à família que já formavam, ensaiando a função de pais. A gravidez de Deolinda veio assim fechar um ciclo e dar início a um outro.
Tudo parecia correr bem. O lance fatal começou com o nascimento da criança. Que, para espanto de todos, veio cor de chocolate.
Foi um alvoroço de desconfianças. Como era isto possível, perguntava-se a família de António, sendo os pais de raça branca? Teria havido troca de crianças, chegaram a admitir. E, por fim, chegou a questão mais grave, aquela que punha em causa a seriedade de Deolinda.
Naquele momento, naquela altura, só havia uma forma de agir. Era urgente fazer testes e perceber que mulher era, afinal, a mãe daquela criança. Ou, dito de outro modo, averiguar se o filho era ou não, de António.
Como se pode calcular, isto era o princípio do fim de qualquer coisa tida por sólida. Fizeram-se os exames necessários. Não havia qualquer dúvida sobre a paternidade do pequeno ser. O que não se sabia e se descobriu, é que, afinal, ambos tinham tido trisavós de cor...
O mal estava feito. A confiança fora quebrada e nada do que veio a conhecer-se posteriormente foi suficiente para a restabelecer.
Afinal as leis de Mendel e as probabilidades que as mesmas estabelecem não são letra morta. Mas de nada valem, quando a infidelidade feminina é a admissão imediata...

Helena

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Uma história de números


Tudo começou quando o símbolo de infinito - uma espécie de oito deitado - começou a mexer-se. Tanto gesticulou que acabou por se pôr de pé. Quando tal aconteceu sentiu-se diferente, sentiu-se outro. E estava de facto mais redondo, mais composto. Decidiu, por isso, tomar uma nova identidade. Passou a chamar-se oito. Mas sentia-se tremendamente só.
Copiando a capacidade de certos animais de se replicarem, imitou-os. Porém, a réplica teve algumas falhas e em lugar de outro oito nasceu um elemento a que chamou três, que lhe era em tudo igual, mas com interrupções no fecho das bolinhas que constituíam o seu corpo.
Mas o oito não ficou, claro, satisfeito com o resultado e resolveu repetir a façanha. Igualmente incompleta, a réplica configurou mais um número. Desta feita chamaram-lhe seis, cuja bola inferior estava bem, mas a superior, na vertical, apareceu reduzida a metade.
O seis era um número agitado e que preocupava bastante a família numérica em que nascera. Um dia brincou demasiado, deu uma cambalhota e voltou-se ao contrário. Foi, então, que libertário, se passou a chamar nove.
O clã ia aumentando e o oito estava a ficar velho. Por isso, disse ao três que era a sua vez de contribuir para o aumento do agregado. Enquanto primeiro filho e cumpridor, resolveu inovar. Juntou-se ao nove e trabalharam, com prazer, para o objectivo comum. Nasceu um belo espécimen, muito pequeno e roliço a que deram o nome de zero.
A partir daí aquele grupo sentiu que adquirira a possibilidade de se ligar entre si, como entendesse. Era toda uma nova filosofia de vida, que os mais novos trouxeram consigo... Era a liberdade sexual!
E se assim pensaram melhor o fizeram. Talvez de modo excessivo, porque se ligaram sem controle. E, de uma relação acidental entre o nove e o três nasceram logo dois gémeos que, não sendo embora unicelulares, eram bastante parecidos. Chamaram-lhes sete e quatro.
Estes, na altura devida geraram vida e criaram o um que, francamente, era uma boa mistura dos pais.
Porém, quando tudo apontava para que a família estivesse completa, o três - que era sentimentalmente bastante problemático - resolveu envolver-se com o sete dando, afinal, vida ao número cinco.
Este agregado viveu tempos tranquilos, até que ideias vindas de fora, lhes deram conhecimento de que o mundo inicial dos números tinha ainda múltiplas possibilidades a explorar para criar novas famílias.
Com efeito, os números não tinham que viver sempre sozinhos. Cada um deles tinha um imenso futuro à frente, arranjando-se de modos diversos.
Foi desta nova maneira de encarar a existência, que viriam a nascer outras famílias numéricas cuja variedade nunca mais teve limites...

Helena

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

As filhas do Comendador


O Pedro era o que se chama de um jovem bem apessoado. Nem bonito nem feio. Mas com uma enorme capacidade de chamar a atenção dos outros sobre si.
Como dizer? Nada do que fazia era extraordinário, mas tudo era visto como algo especial. Enfim, na prática conseguia tornar grandes as pequenas coisas. E julgava que sabia como se aproveitar disso...
Não teria uma especial vocação para o casamento, mas desconfiava que seria através dele que mais facilmente poderia alcançar um upgrading social.
Com efeito, considerava trabalhar como uma opção penível. Por isso, tinha já algumas pistas sentimentais bem estudadas para o efeito.
Na calha encontravam-se duas irmãs, filhas do Comendador Silva, que cumpriam à risca os seus desidérios. O problema era mesmo qual delas escolher.
Clara era bonita, mas não devia muito à inteligência. O que até podia ser, para ele, um benefício, pensava. Assim seria mais fácil controla-la.
Ana não era feia. Mas não tinha nada da graciosidade da irmã. Todavia, e em contrapartida, era a eleita do pai para a administração dos negócios. O que, para Pedro, era um factor importante.
Lá bem no fundo perseguia o sonho de todos os homens, que seria poder ter as duas e ficar com a administração do património do Comendador. Esta, sim, seria a situação ideal...
O tempo corria e Pedro não se resolvia. Cortejava ambas, crendo que uma não saberia da outra. Até que, um dia, ambas o chamaram para lhe fazerem a proposta de viverem os três.
Pedro não queria acreditar no que ouvia da boca das filhas do Comendador Silva, que ele sempre julgara prendadas e sérias.
Então elas explicaram-lhe que o Pai havia decidido que a primeira a constituir família seria a que ficaria a administrar os seus bens. Ora elas não queriam ter de escolher, nem contestar a decisão paterna. Assim, ficando ambas com o mesmo homem, o pai seria confrontado com uma situação em problema não se poria.
Pedro não estava preparado para aquela proposta de bigamia de "pegar ou largar". Tentou, por isso, negociar e encontrar uma solução alternativa. Mas não era fácil.
Quando, finalmente, percebeu que ou seria assim ou não seria nada, e se propôs aceitar a situação, um inoportuno AVC matou o velho Comendador, devolvendo às filhas a liberdade de não acatarem a decisão paterna. E com ela, a de prescindirem de Pedro... que, deste modo, e mais uma vez, foi o protagonista de uma "estória" banal que se tornou especial!

Helena

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Há dias assim...


Era uma tarde esplêndida de Outono. Um sol baixo, a rasar o chão, pontuava as cinco horas da tarde, que uma ligeira brisa tornava ainda mais agradável.
Joana estava estendida numa cadeira de lona na soleira do terraço da sua casa no Alentejo. Casa para onde fugia sempre que o trabalho permitia.
Quem a visse, olhos semi cerrados, o livro abandonado no regaço, pensaria que estava a dormir. Não estava.
Apenas recordava uma tarde igual àquela, no mesmo local e quase à mesma hora. Só que tinham passado quinze anos sobre essa data. Tarde na qual, segura de si e da sua carreira, dissera a Pedro que o seu lugar não era ao lado dele, que seguia para os Estados Unidos, mas em Lisboa onde pretendia fazer o seu doutoramento.
Hoje tem dúvidas sobre as certezas de então. Tem uma profissão de que gosta e onde é respeitada e admirada. Mas quando chega a casa, tarde, ouve os seus próprios passos. E isso começa a pesar-lhe.
Joana sabe que se tivesse ido com Pedro poderia estar a responsabiliza-lo por não ter uma vida profissional própria, por não ser, nesse campo, uma mulher realizada. Mas teria uma família, filhos, gente que a rodeasse de afecto.
Joana tem amigos e amigas que a estimam e gostam dela. Mas não tem o casulo que sempre desejou. É claro que teve outras oportunidades de constituir família. Mas o dilema pôs-se sempre e ela não conseguiu dar o passo necessário a uma tentativa de conciliar os dois mundos que tanto ambicionara.
Era nisto que pensava quando a aragem se tornou mais fresca e os últimos vestígios de sol desapareciam no horizonte.
Enroscou-se na manta que tinha na cadeira, e levantou-se murmurando baixo, para si própria, "há dias assim!".

Helena

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O trio perfeito


Esta é uma história verídica. Apenas os nomes, o tempo e os locais foram alterados. E é a prova de como a realidade, por vezes, ultrapassa a ficção.
Na Faculdade de Letras, o Professor Matos era considerado uma das mais brilhantes mentes de que o corpo docente dispunha. Tudo nele transparecia harmonia. Nas suas aulas, sempre cheias, aprendia-se literatura moderna e o gosto de cada autor por razões que, por norma, passavam despercebidas aos menos habilitados.
Pouco ou nada se sabia da sua vida. Constava que tinha um filho, bom poeta, mas que escrevia sob pseudónimo. Não se lhe conhecia mulher nem estado civil. Tão pouco amizades especiais entre os colegas ou os discentes.
Essa aura de mistério aliada a uma natural discrição, faziam dele um dos homens mais cortejados da instituição. Mas Fernando Matos lidava bem com essa circunstância e não dava aso a quaisquer histórias.
Homem de sessenta anos muito bem conservados, o cabelo sal e pimenta e um olho azul de fazer inveja a qualquer nórdico, vestia quase sempre de forma casual chic, o que lhe aumentava, mais ainda, o sucesso pessoal.
Até que no ano de 1980 surgiu Laura, a sua melhor discípula de mestrado, aquela que se oferecia sempre para o ajudar, a que sabia tudo o que ele perguntava. Os colegas riam-se, porque conheciam a indiferença do professor perante tal tipo de alunas. O que não sabiam era da persistência desta nem da sua inteligência.
Com efeito, quando o ano terminou ela teve a mais alta classificação na cadeira. Decidiu, por isso, atirar-se ao doutoramento na área e pediu ao Prof. Matos para ser o seu orientador. Não havia como recusar.
E, ao fim de dois anos, Laura ganhava duas batalhas. Doutorava-se e casava-se com o mestre, passando a ter por enteado Alexandre, que tinha a sua idade e com quem foi criando laços de afecto que deixavam Fernando Matos agradecido e feliz.
Tudo o que o poeta escrevia era, agora, previamente apreciado por Laura, cujos conselhos se tornaram preciosos. E ela tinha em Alexandre o companheiro para tudo aquilo que Fernando, mais velho, dispensava.
Porém, numa ausência de marido que decidiu participar numa conferência do outro lado do Atlântico, o imprevisível aconteceu. E o previsível também...
Três meses depois, Laura estava grávida. De quem, ela não estava segura.
A questão que se lhe punha era não só saber quem era o pai e o avô, como decidir, não o sabendo, se devia contar ao marido o que se passara. E tornar, muito possivelmente, quatro pessoas infelizes.
Optou por não contar. Nem a um nem a outro. Os anos decorreram tranquilos. Laura quase se esqueceu da dúvida que a consumira tantos anos.
E só muito mais tarde, já viúva, quando necessitou de uma transfusão de sangue para a filha, é que teve a certeza de que o pai era Alexandre...

Helena

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

As redes sociais


Quanto tempo se escreveram? Nem eles próprios já sabiam.
A sua história começou na blogosfera, para ser mais explícita no Facebook. Não acredita? Mas é a mais pura das verdades.
Joana saíra magoada de uma relação. Para usar terminologia vulgar, fora "trocada". A expressão não é feliz, mas corresponde mais ou menos à realidade. Por isso fechara-se em casa sem vontade para ver ninguém.
Um dia uma amiga disse-lhe que fosse aos seus amigos do Face e escolhesse um, cujo perfil lhe agradasse e lhe deixasse uma pequena mensagem. Ao menos, podia conversar sem se preocupar, ocupando a mente e fazendo a catarse do insucesso amoroso.
Não deixou contudo de a avisar que se não fiasse nos rostos que às vezes nem sequer correspondiam à realidade. E foi assim que tudo começou com o João, ele também saído de uma ligação que não correra bem.
Começaram a escrever-se. E a entender-se. Passaram da rede social ao e.mail e deste ao telefone. Criou-se, deste modo, um laço cuja caracterização era difícil de definir.
Faltava o passo final de se encontrarem. Curiosamente, embora falassem disso, nenhum parecia verdadeiramente interessado em o dar.
Os meses correram ligeiros. Joana parecia encaminhar-se para a cura e João também. Habituaram-se um ao outro. E às longas noites a conversar. No fundo, começavam e terminavam o dia juntos.
A mesma amiga que a estimulara antes, dizia-lhe agora que deviam conhecer-se. Joana deu-lhe razão e fez a proposta de João vir a sua casa beber um café.
Combinado o encontro chegou o dia. E com ele a surpresa.
Quando se sentou na sala João pareceu incomodado. E minutos depois perguntou de chofre a Joana quem era o homem que estava na foto da mesa da sala.
- o meu ex-marido, respondeu ela
- o malandro que me roubou a mulher, retorquiu ele
O silêncio foi pesado. Mas durou apenas os segundos que levaram João a sair da sala...

Helena

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O equívoco...


Tiago e Susana formavam um daqueles casais modelo que animam semanalmente as chamadas revistas do coração. Mas cada um deles podia, de modo singular, pisar as passarelas, dado que se distinguiam não só pela qualidade e bom gosto daquilo que envergavam, como pela beleza de quem sabe que o aspecto físico conta muito.
Ambos com carreiras promissoras, deambulavam pelas festas sociais com o direito que lhes assistia pelos altos cargos que ocupavam. Foi numa dessas cerimónias elegantes que o "caso" se passou.
Quando entraram na sala o champanhe já animara a conversa preparando, assim, um jantar que prometia ser tudo menos aborrecido.
Nos cumprimentos habituais - abraço aqui, beijo acolá, aperto de mão para os menos próximos - o casal ia esbanjando a sua habitual simpatia.
Até que Tiago se deu conta do insistente olhar que um dos convivas ousadamente lhes dirigia. Primeiro tolerou, depois enervou-se. Não era um marido ciumento, mas a situação estava a tornar-se incómoda.
Para prevenir males maiores, dirigiu-se discretamente para o perturbador e baixinho disse-lhe:
- meu caro amigo, o seu olhar está a incomodar a minha mulher.
Ao que o visado respondeu:
- pois não devia, porque é para si que a minha atenção se dirige... caso esteja interessado em sabe-lo!

Helena

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Tudo se transforma


Conheciam-se de crianças porque tinham crescido juntos. Gente humilde, modesta, lá para as bandas do Alentejo, habituados a do pouco fazer muito.
Ela queria ser grande. Ele não pensava nisso.
De manhã, chovesse ou fizesse sol, percorriam quatro quilómetros para ir aprender o que os havia de salvar. Achavam os outros. Que eles só achavam muito duro tanto ter de caminhar.
O tempo foi passando. A garota virou mulher, fez-se gente, que era a sua aspiração. O rapaz, esse, fez-se ao caminho da capital, como moço de recados de um conterrâneo que abrira uma mercearia.
A moça casou, porque esse era o seu destino. O miúdo aprendeu como o negócio se fazia e, depressa saiu das obrigações dos outros, para as suas próprias obrigações. Anos passados, era a sua vez de mandar fazer recados.
Da loja de bairro que tem tudo, passou a loja que só tem algumas coisas. Aquelas de que gosta quem tem mais dinheiro. Foram estas que se multiplicaram e fizeram dele um homem rico. E só.
A mulher feita, fez-se mãe, completando o ciclo que lhe estava destinado. De dois filhos. Que a vida não permitia mais. Mas, de repente, quando nada nem ninguém o esperasse, ficou viúva. Com filhos criados, ficou só.
Cada um completando o seu ciclo vital, acabaram por se encontrar no enterro de um amigo comum. Ele viu nela a infância esquecida. Ela viu nele o futuro que poderia ter sido o seu.
Despediram-se com o olhar, ambos amparados nas suas próprias solidões...

Helena