segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Guardado está o bocado...

Éramos muito Maria rapazes. Mas vinhamos todas da mesma escola primária, a da senhora D. Branquinha, a qual, por todos os meios à sua disposição, tentava fazer de nós umas meninas bem comportadas. Não o terá conseguido completamente, mas melhorou-nos muito.
Entrámos todas para o Liceu D. Felipa de Lencastre. Da dezena que constituía o nosso grupo, apenas a Manuela destoava. De facto, a beleza não a fadara. Em compensação era, de longe, a mais dotada. Tirava apontamentos das aulas, esclarecia as nossas dúvidas e alinhava sempre nas nossas pequenas loucuras. Era o que se podia dizer "um amor de pessoa"!
Fomos crescendo sempre juntas e juntas apanhámos o primeiro embate: a tuberculose da Judite. A lembrança que tenho desse tempo é terrível, porque a nossa amiga foi para um sanatório e as nossas famílias, com receio de contágios, evitavam que tivessemos qualquer contacto. Nem as cartas nos eram permitidas...
Um dia veio a notícia. A nossa amiga morrera. O facto marcou-nos a todas. Mas a Manuela, sempre ela, tomou a iniciativa de que junto ao corpo fosse uma carta escrita por todas nós. Ainda hoje lembro esse meu primeiro contacto com a morte, com tristeza e galhardia, por termos conseguido que a Judite levasse com ela um bocadinho de todas nós.
Crescemos. Ficámos janotas. Tivemos namoros. A Manuela melhorou, mas continuava pouco apreciada pela beleza. O que nela encantava era algo bem diferente, qualquer coisa que vinha de dentro, uma luz que nós não tinhamos.
Entradas na Faculdade, deparámos com um professor que "embeiçava"o pessoal feminino. Cada uma de nós estudava para ser a melhor e se poder tornar o centro das atenções do nosso guru. A Manuela não fazia qualquer esforço. Era naturalmente a melhor. E foi nela que o professor reparou. E a ele que ela, simplesmente, correspondeu. Sem dúvidas ou complexos.
Fomos, há dias, aos seus cinquenta anos de casada. Foi um gosto imenso revê-los. Manuela está hoje uma mulher interessante. À despedida disse-nos, a sorrir, que sempre acreditara que "guardado está o bocado para quem o há-de comer...". Gargalhámos com satisfação e concordámos com ela!

Helena

1 comentário:

  1. Helena, a beleza interior, está hoje em dia tão desaparecida dos nossos princípios que me deu muito gosto, ler a sua história :)

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