sábado, 3 de dezembro de 2011

A parure


Era um homem gordo e, como a maioria deles, de apurado sentido do humor. Jurista de formação, dividia tempo e talento por uma Universidade onde era professor e pela administração de uma respeitada instituição bancária.
Nesta última função dispunha de carro e de um fiel motorista, profundamente conhecedor da sua agenda pessoal e profissional.
À época - a história, de contornos verídicos, passava-se no princípio dos anos setenta, e antes da revolução dos cravos, onde ambos os homens haviam de ser saneados -, a roupa interior era muito apreciada pelas damas.
O Professor Acácio tinha, como era então tradicional, uma mulher legítima, e outra legitimada pelos anos do convívio. Durante a semana laboral dividia-se. Ao almoço, estava sempre com esta última, e ao jantar, por norma, ficava com a primeira. Horário que, por norma, se invertia aos fins de semana.
D. Clara, mãe dos seus seis filhos, era uma roliça satisfeita. D. Odete, ao contrário, era uma esbelta mulher, que ele conhecera ainda muito jovem e que lhe aparecera como secretária, dois anos após o matrimónio, quando começara a esfumar-se o fogo da paixão.
O secretariado durou pouco, claro, porque Acácio não queria Odete partilhada na cobiça dos clientes privilegiados do banco. Assim "pôs-lhe casa" e Odete passou a ser teúda e manteúda pelo banqueiro. Diga-se em boa verdade que, à excepção dos filhos, qualquer delas gozava dos mesmos benefícios.
Num dos almoços, Odete manifestou vontade de possuir uma "parure" - nome dado ao conjunto de cueca e soutient - de renda negra que se vislumbrava numa das montras da Loja das Meias, ao Rossio.
Acácio não esqueceu a sugestão e, no dia seguinte, encomendava duas, uma de medida 38 e outra de medida 46. Iguais, mas em caixas separadas. Depois escreveu dois cartões com palavras de amor, e encabeçados ambos por "meu amor", que mandou distribuir por cada um dos embrulhos.
Chegado ao banco chamou o senhor Marques, o fiel motorista para que este procedesse à entrega. Mas esperava-o uma surpresa. Quem estava de serviço era o Garcês, porque o colega adoecera com uma gastrite.
Face à nova situação, Acácio encarregou-o do trabalho, explicando bem que um embrulho era para sua casa e outro para a morada que lhe deu.
Ao fim do dia, o motorista esclareceu-o de que havia cumprido as suas ordens. Quando chegou ao domicílio conjugal, Clara havia saído. Entraria pouco depois, dando-lhe um grande abraço.
- Meu querido a parure era linda. Mas , amor, tive que ir à Loja das Meias porque estava muito pequena. Vê tu a sorte. Não havia o meu número e, nesse instante, entrou uma senhora muito simpática, a quem acontecera justamente o contrário.
- Olha, acreditas em coincidências? O número que ela tinha era o meu. E o que eu tinha era o dela. Por isso, fizemos a troca e acabámos por dar até um abraço, quando descobrimos que ambas éramos casadas com um Acácio!
- Que sorte, minha querida. E não disseram mais nada?
- Não, Acácio, porque eu estava ansiosa por vir para casa estrea-la contigo!

Helena

Nota: Esta história foi uma promessa feita ao meu amigo e comentador Henrique Antunes Ferreira

4 comentários:

  1. Li a "parure" do Henrique e li a sua, qual delas a mais interessante. E aprendi uma palavra nova...

    ResponderEliminar
  2. Helenamiga

    Que posso dizer? Que esta estória (que fizeste o favor de me dedicar, o que muito agradeço) é muito mel..., perdão, quase tão boa como as minhas. Os meus parabéns, portanto.

    Não habia porém nexexidade de ter um intérprete gordo e banqueiro. Entusiasmaste-te e deu no que deu. Mas, enfim, o perdão e a magnanimidade são características do Grandes Homens, cuja compreensão pelas faltas (pequenas) do seu próximo - no caso presente é mais da sua próxima - é apanágio que assenta como uma luva no respectivo perfil.

    Mas nunca como uma parure, aliás de três peças. Lagarto, lagarto, lagarto. Abrenuncio, te esconjuro, Satanás! Mas, um destes dias pagarás-me-la-zarás.

    Um grande queijinho - da Serra

    ResponderEliminar
  3. Ó meu querido Henrique a tua parure é mais tapada do que a minha. As minhas sempre tiveram - e têm - duas peças.
    Antes eram mais reduzidas, hoje, discretamente menos descobertas.
    Mas ainda parures. E de cores lindas...
    Toma lá esta com um queijo da Helena

    ResponderEliminar
  4. Já me tinha rido, com a história do Henrique. Agora a sua fez-me rir de novo.
    A lata dos homens e a santa ingenuidade das mulheres. Quantos casos parecidos devem já ter acontecido.
    Beijinho
    Maria

    ResponderEliminar