A carrinha dos medicamentos parou na Infante Santo, à porta da farmácia. O descarregador tirou um caixote e colocou-no corredor, para depois ser tudo conferido pela D. Alice, que adorava fazer aquele trabalho.
A aspirina efervescente na sua embalagem de prata sentiu que a caixa onde se alojava ficara mais leve. De facto, haviam-lhe tirado de cima um outro caixote bem pesado.
Algumas horas depois a D. Alice lá arrumou a sua caixa na prateleira. Agora, só faltava que algum cliente mais dolorido ou engripado a pedisse, para ela sentir que tinha utilidade. Claro que sabia que só possuía 500mg e que havia irmãs suas com o dobro dosagem e, admitia, o dobro da eficácia.
Mas tinha esperança de que alguém a preferisse, a desejasse só a ela.
- uma caixa de aspirina, D. Alice, por favor. Estou a começar a chocar qualquer coisa. Sinto o corpo todo moído.
- de 500 ou de 1000, senhor José?
- pode ser de 500.
- aqui tem.
-obrigado. Junte à minha conta, por favor.
Finalmente encontrara alguém que lhe iria permitir cumprir o seu destino, pensou a aspirina. Mas estavam tantas em cima dela, que não acreditava que fosse naquele dia que lhe pegariam.
José entrou na pastelaria, sentou-se na mesa e pediu um café e um meio copo de água. Quando tudo já estava servido, abriu a caixa do remédio.
O empregado, ao passar e sem querer, deu um pequeno encontrão no braço do cliente. O conteúdo caiu no chão. Aflito, pediu imensa desculpa e correu a apanhar cada uma das carteiras prateadas que se haviam espalhado. Depois de arrumadas, por um bambúrrio da sorte, a nossa protagonista ficou em primeiro lugar.
Devagar José pegou-lhe, rasgou a prata e lançou o pó no copo de água. A dissolução foi lenta, ao jeito da heroína que se sentia desfalecer e, ao mesmo tempo, rejubilava por cumprir o seu destino, deslizando pela garganta de José.
Este, de seguida, bebeu o café, pagou e saíu. A caminho do escritório já se sentia melhor. A aspirina exalara o último suspiro, os seus componentes misturaram-se com os de José e ela deixou, por fim, de existir.
Há sempre quem, devotadamente, se dedique a aliviar a dor dos outros...
Helena
Helenamiga
ResponderEliminarPois eu só posso tomar paracetamol porque tomo Varfine. Mas penso que a D. Alice(*), bondade em pessoa, também tem e efervescente
Qjs
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(*) Não refiro à minha grande Amiga e ex-(in)subordinada Alice Vieira, que ainda no meu aniversário, esteve cá em casa a comer uns picantezinhos da D. Raquel (brâmane de primeira, católica).
A minha caríssima metade é goesa, com árvore genealógica e tudo, desde que o seu primeiro antepassado, D. Ignacio de Melo foi baptizado em 1588, pois antes da água-benta chamava-se Raikar.
Árvore que, de resto, eu abastardei, sendo um pária como sou. O meu falecido sogro e meu segundo pai, Carlos Alcântara de Melo, ao saber, porque mo perguntara, que eu era um plebeu assumido, só conhecendo quem eram os meus avós, decidiu (se com suspiro, não dei conta) encerrar aquele ramos, em seguida. Mas... já estávamos casados.
Qjs
Querida Helena, as suas histórias têm preenchido os meus serões. Numa altura em que as noticias são deprimentes, as pessoas andam chateadas e a inspiração pessoal começa a escorrer pelos esgotos de tanto segurar as pontas de quem nos rodeia, os seus contos são uma evasão maravilhosa.
ResponderEliminarMuito obrigada,
Mariana