A luz do quarto era coada, própria daqueles fins de tarde de Outono, de que Joana tanto gostava. Era um Domingo igual a tantos outros que ela já passara. Na cómoda um ramo de rosas bebia a agua do pote de vidro transparente em que estavam acomodadas e libertava o odor característico de quando acabavam de ser colhidas.
A roupa, abandonada na cadeira de veludo e no chão, indicava bem a pressa de quem a despira. Lá longe, vindo de fora, um vozear de crianças e adultos era prova de vida.
Joana enrolou-se bem no edredon para, alguns minutos depois, começar finalmente, a espreguiçar-se debaixo dele. Que horas seriam, pensou. Mas a preguiça que ainda a dominava, superou a curiosidade de olhar o relógio no outro lado da mesa de cabeceira. E assim continuou, com pequenos gestos anímicos, durante alguns minutos mais.
Finalmente lá rodou o corpo para o outro lado da cama. A almofada, enorme, amachucada, ainda tinha o cheiro do corpo do Guilherme. E ela enterrou o rosto nela como se, com esse gesto, trouxesse de volta um pouco dele, da tarde de domingo que ele sempre lhe dedicava.
Olhou as horas - sete e meia - e reparou que ele se havia esquecido do seu
belo IWC que o banco lhe oferecera por vinte e cinco anos de dedicado trabalho.
Quase tantos como aqueles que ela lhe dedicara de vida, contados pelas tardes que, no dia de descanso, entre as três e as seis horas, ele lhe concedia desde que passara a acumular com as funções de secretária, a de amante exclusiva.
Fora esta a sua vida desde que, aos vinte anos, fora seleccionada, para ser a sua sombra. Hoje tinha quarenta e dois, o Guilherme e o emprego. Nada mais!
Às vezes julgava que era pouco, que tinha direito a muito mais, depois de lhe ter entregue tudo, até a sua virgindade. Mas o que mais a desgostava não era o que lhe dera. Era o que ele lhe tirara. De vida, de convívio, de amizade. A que inicialmente ela não reagira - era, afinal, uma forma de ele a amar, pensava - mas que agora, acentuava profundamente a vida solitária que levava e ele tanto apreciava.
Quantos Domingos representavam vinte e três anos? Mil e muitos, com certeza, calculou. Estava nestes pensamentos quando a fechadura da porta do quarto girou. Assustou-se. Afinal era Guilherme que voltava para levar o seu relógio.
- querida, descansa. Não quis acordar-te, mas esqueci-me do relógio. Deixa-te estar. O quarto está pago como sempre até amanhã. Porque não ficas aqui e vais directa para o banco?
Manda vir o jantar e vê a televisão. Hoje há o Marcelo. Sempre te distrais.
Adeus querida. Até amanhã. A Carolina já está à minha espera e eu atrasado.
Ah! Não te esqueças do processo do seguro que está quase em cima da hora.
Deixa-mo logo que chegares, na secretária. Fica bem!
- Fico bem. Mas com saudades tuas...
Helena
Cá vim, Cara Helena, que sou bem mandada. Já sabia destes blogues e, de vez em quando, venho, mas a inércia é uma coisa terrível. Estou habituada a ir ao Fio de Prumo e, muitas vezes, acabo por me esquecer de vir a estes.
ResponderEliminarEstive a ler a história do Senhor Director ou Administrador, casado, com a sua secretária como amante e outras histórias mais abaixo de mulheres, tantas vezes sozinhas ou abandonadas.
Mas porque há-de ser quase sempre assim? Não quererá a Helena oferecer-nos aqui uma história ao contrário? Uma mulher com marido e um fiel amante? Em vez de uma bigamia de fazer sofrer as mulheres, uma que seja uma festa, uma bigamia de dar gosto...?
(Isto que estou a escrever ainda deve ser influência do comentário que acabei de ler no Fio de Prumo do seu leitor Patrício Banco que refere que deve haver humor... e como gosto de andar bem disposta e de me rir... )
Um beijinho, Helena, e bom domingo!
Imagino (ou talvez não) o quanto este texto espelhará a realidade...
ResponderEliminarE quantas Joanas acabam por se contentar com o pouco que têm porque estão convencidas que já é muito. Tudo porque no fundo não acreditam verdadeiramente no seu valor e naquilo que merecem e ainda são capazes de ter medo de perder o pouco que têm mas que para elas ao menos já é algo...
E a quantidade de Guilhermes que alimentam estas situações simplesmente porque não têm coragem de fazer uma escolha ou simplesmente porque no fundo não são capazes de amar alguém de verdade...
Ó Jeitinho tem aqui várias bigamias alegres. Tão alegres que se chegam a encontrar todos!
ResponderEliminarDepois tem outras estórias com humor. As que são tristes até são poucas. São só de Dezembro, et pour cause!
Bjo
Historietas de mal de amor e traição. Nada de novo na literatura portanto. A história é banal, as personagens nadam no limiar abaixo de zero da densidade psicológica e a estrutura narrativa é decalcada dos milhentos autores de literatura light com capinhas reluzentes e apelativas. A isto junte-se o peso do nome e temos best seller... Não é politicamente correto, mas cansa-me ler tanta coisa igual, a bater no tema do amor...Uma leitura rápida de "A retórica da ficção" do Wayne C. Booth não fazia nada mal...
ResponderEliminarMacho Sensível
ResponderEliminarCom este nick name é difícil começa por "estimado" ou "caro"...
O texto retrata a s vidas de imensas mulheres que me escrevem e que são a fonte inspiradora do muito que publico.
É que a realidade ultrapassa frequentemente a ficção!
Ahahah
ResponderEliminarCara Helena,
Agora fez-me rir com essa do nick name :)
Sim, acredito que sim!... Mais um incentivo para tornar ainda mais aliciante a leitura dos seus textos.
Mais um blogue que irei acompanhar. :)
Caro Gollum
ResponderEliminarTem toda a razão. Eu, no seu caso, diria o mesmo. Sugeria a leitura dos clássicos. De preferência Cesário Verde. Para já não lhe aconselharia os estrangeiros.
E, claro, não perderia tempo com o peso dos nomes, porque certamente nem os conheceria.
Mas, creia, agradeço o comentário. A franqueza é das qualidades que mais aprecio.
Helenamiga
ResponderEliminarPosso meter o bedelho? Não? Mesmo assim, meto. É um recado ao Gollum: cresce e aparece; nada mais.
Para ti, um muito obrigado pelo que me (nos) dás. E...
Qjs