quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Antigamente...


Era já época de calores abrasivos. A pauta marcava seis alunos para as orais da parte da tarde. A professora, a doutora Elvira, vinha esbaforida de calor e, para mal dos seus pecados, o ar condicionado da sala de aulas, funcionava de modo intermitente. Estavam assim reunidas as condições menos felizes para discentes e docentes.
A primeira aluna não se portou mal e saíu com catorze valores. O segundo levou dez, mas se estivesse mais fresco, talvez não tivesse passado. O terceiro reprovou e nem à oral devia ter ido. Foi uma daquelas repescagens a que, numa segunda visão de notas, se resolve dar o benefício da dúvida.
A quarta, menos mal, conseguiu um doze sem custo. O problema surgiu com o quinto, Alexandra, cujas capacidades a professora conhecia bem de um ano de trabalho com qualidade acima da média.
A aluna entrou na sala e sentou-se na cadeira. Elvira examinava, com atenção, a sua caderneta escolar. Durante algum tempo, esteve a folhea-la para se aperceber das classificações tidas nas outras disciplinas.
Demorou um pouco nesse seu interesse, enquanto se esforçava, com um leque, por diminuir a temperatura do corpo.
Quando decidiu começar o interrogatório, sentiu que a jovem não estava bem. Por isso, começou com questões simples para a pôr à vontade. Mas tal não surtiu grande efeito. A boca de Alexandra não se abria e a sua testa ia-se enchendo, cada vez mais, de gotas de suor.
- voce está doente?
-não. Não estou. Pode continuar, setôra
- veja lá se quer interromper o exame e faze-lo depois do seu colega
- não setôra, obrigado.
O exame prosseguiu mas Alexandra não havia meio de emitir qualquer som. Estava a ficar demasiadamente afogueada e o rosto ia ficando perlado de suor.
Receando que algo acontecesse, Elvira mandou evacuar a sala e fechar a porta.
A sós, depois de lhe dar um copo de água, disparou:
- ó Alexandra, diga-me lá o que é que se passa, agora que estamos aqui só nos as duas.
- não é nada setôra
- bom, então vamos ao posto médico.
Nesse preciso momento, a rapariga começou a chorar convulsivamente e de modo atrapalhado, balbuciou:
- é que a setôra estava a ver que eu sou filha ilegítima...
- Como? O que é que está dizer? Por favor, acalme-se e fale devagar.
Foi então que, entre soluços ela revelou que entendera que a professora, ao demorar tanto a ver a sua caderneta, se tinha apercebido da sua situação de filha ilegítima e se sentira muito diminuída...
- Alexandra eu estava, apenas, a ver as suas outras classificações. Nada mais. Mas aproveito para lhe dizer uma coisa: "os filhos nunca são ilegítimos. Os pais é que podem sê-lo". Vá em paz e descanse um pouco. Conheço o seu trabalho. Vou fazer-lhe o exame no fim de todos os seus colegas.

Esta estória passou-se há cerca de trinta anos, quando na lei portuguesa se consentia o uso daquela bárbara expressão jurídica!

Helena

6 comentários:

  1. É verdade, era uma chaga que envergonhava quem assim era classificado. Já nem me lembrava disso mas é bem verdade.

    ResponderEliminar
  2. uma história real contada com muita naturalidade, um relato sóbrio, nem com palavras a menos nem a mais, duma situação humana.

    ResponderEliminar
  3. Querida Helenamiga

    Pois; a minha prima Leontina gostava muito de dizer coisas, pois. Que me perdoe o nosso Raul, mas não sou capaz de o fazer como ele o fazia.

    Pais ilegítimos é o que não falta por aí.

    Mais uma vez tenho de dizer bem, digo, muito bem, perdão muitérrimo bemzíssimo de um texto teu. Aliás, de todos. És mesmo bué da fixe...

    ResponderEliminar
  4. Diz bem Helena: Bárbara! Que culpa tinham os filhos dos actos dos pais?
    Tive uma colega, cujos pais eram casados "só" pelo civil, que era posta à margem pela maioria das colegas. Foi uma das minhas melhores amigas.
    Odeio preconceitos!
    Beijinho
    Maria

    ResponderEliminar
  5. Fala-se que a educação de antigamente era extremamente rigorosa, que os professores eram maus como as cobras, castigavam como "brutus" e com este texto percebi-me que afinal eram seres humanos, capazes, pelo bom senso, de distinguir o trigo do joio :)

    Tenho 36 anos, sou professora e não tem ideia de quanto a admiro :)

    Bem haja

    ResponderEliminar
  6. E que tal um conto de natal... para lermos na consoada????
    Gosto de a ler!

    ResponderEliminar