segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amores

Há amores que perduram. Outros que acabam. Outros, ainda, que se transformam.
Há amores sexuais. Há amores filiais. Há amores maternais. Há amores fraternais. Enfim, há os amores mais diversos.
Era isto que Isabel pensava, naquela sala de espera do consultório. Era por causa desses afectos complicados que ela ali estava, pontualmente, às segundas e às quintas de todas as semanas dos últimos quatro anos.
O ritual era empre o mesmo. O analista raramente lhe fazia perguntas. Só quando receava não ter percebido o que ela dissera. E ela nem sempre se sentia com capacidade de falar. Mas, fosse qual fosse o seu estado de espírito, fosse qual fosse a conversa ou o silêncio, os cinquenta minutos que lhe eram dedicados marcavam a sua hora de saída.
Nessa tarde, mal se sentou, começou a falar. Queria perceber que tipo de sentimento a ligava a um homem de quem se separara por vontade própria, de quem já não gostava, de quem não tinha filhos, mas de quem se não conseguia, afinal, libertar.
É insano, dizia. Como posso pensar, lembrar-me, ter presente no meu espírito alguém que nada tem a ver comigo senão um triste passado. Porque é que isto me acontece? Que tipo de laços são estes e a que género de patologia é que eles estão ligados?
Será que isto me passará quando eu encontrar alguem que mate estas lembranças? Mas como, se as lembranças são todas tão más? Será que o desprezo que sinto por este homem com quem partilhei tantos anos, não chega para o apagar dentro de mim?
Será que, no fundo, tudo o que sinto, são ainda manifestações de um relacionamento que eu renego? Mas se é assim, como é que eu vou libertar-me dele e de mim para me abrir a algo que seja verdadeiramente regenerador? Ou não tenho, mesmo, cura?
O médico sorriu. Parecia satisfeito quando lhe disse "até quinta feira, à mesma hora"!

Helena

4 comentários:

  1. Há patologias incuráveis se nunca nos curarmos a nós próprios.

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  2. Passaram-se tempos e Isabel cansou-se das sessões com o analista que raramente lhe fazia perguntas. Cansou-se daquele ritual, sempre o mesmo, de ser ela sempre a falar. Cansou-se do silêncio a marcar o tempo quando não lhe apetecia falar. Cansou-se dele que não falava. Só quando receava não ter percebido o que ela dissera. Para quê perceber melhor o que dissera se dele ouvia nada? Cansou-se de o ouvir tão pouco para nada. Cansou-se de o ouvir na despedida, "até quinta-feira", "até segunda-feira" sempre à mesma hora. Cansou-se dos sorrisos das despedidas. Procurou outro analista. Que lhe dissesse mais. Que não escutasse só. Que falasse, que escutasse, que escutasse enquanto também lhe falasse. Que a deixasse falar mas não só. Encontrou outro analista. Ao princípio estranhou. Ouvi-lo. Depois gostou. Parecia-lhe um espelho. No fim de cada sessão ele falava. Pareciam palavras e discurso desgarrado. Desligado dela. Saía, caminhava. As palavras dele regressavam, e não era sempre, e não era logo, às vezes demorava bastante tempo, mas as palavras faziam-na pensar, caminhava. Ela entregava-lhe pensamentos. Ele devolvia-lhe pensamentos. Parecia um espelho. O espelho funcionava. Percebeu que o discurso e o estar se desenredavam. Já não eram remoinhos, às voltas, círculos largos que por mais largos levavam sempre ao mesmo lugar, disfarçadamente sempre à volta do mesmo. Desenredava-se. Autonomizava-se. E às vezes. Às vezes ele dizia como a via corajosa nos progressos que fazia. Nem sempre. Que doía. O sentir. Pensar. Recordar. Principalmente descobrir o porquê do que sentia e de como tanto vinha do recordar. Tanta coisa. E os porquês que tanto doíam. Um dia chorou tremendamente, pensava que o chão desabava, queria libertar-se, pensou que os cinquenta minutos já estavam passados. E estavam. Fez menção de se ir. Ele fez-lhe sinal que ficasse. Ela ficou até acabar de chorar. Desse dia em diante. Desse dia em diante. Foi como se tivesse renascido. Aos poucos reconstruiu-se. As sessões continuaram. Depois sentiu que podia espaçá-las. E um dia disse-lhe:
    - Mário, acho que já não preciso.
    O analista sorriu. Parecia satisfeito quando lhe disse "até sempre, Isabel”.

    Pedro

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  3. Pedro
    A análise é assim mesmo. Uns vão mudando de analista. Até que desistem. Ou até que se reencontram.
    Outros têm sorte à primeira. E ficam. Mesmo que haja sessões de silêncio. E, um dia, mais cedo ou mais tarde, descobrem que afinal valeu a pena.
    A análise nunca está terminada. Mas há uma altura em que sentimos que já "não precisamos tanto". É quando o processo de reconhecimento começou...
    Eu deixei ao leitor a interpretação. Você deu-lhe um fim!

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  4. um fim
    um começo
    todo o começo com um fim
    o fim de todo o começo

    :-)

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