segunda-feira, 2 de abril de 2012

A intimidade dos pais

Nunca conhecemos bem os nossos pais, pensava Deolinda depois de ter arrumado a última gaveta dos objectos pessoais daquele que lhe dera a vida. No meio da sua tristeza pela perda que acabara de sofrer, também sentia um misto de pasmo e de irritação pelo que, sem querer, lhe tinha vindo parar às mãos.

Os pais haviam-se divorciado quando eles eram pequenos. Deolinda não tinha qualquer lembrança deles enquanto casal. O irmão, Marcelo, ao contrário lembrava-se bem e havia sofrido muito com a separação paterna. Ele ficara com o pai e a irmã ficara com a mãe. Mais tarde, quando a mãe se voltou a casar e teve que ir com o marido para o estrangeiro, haviam de voltar a juntar-se na casa paterna. De facto, por causa dos estudos, ambos ficaram, nessa altura, com o pai.

Marcelo, inteligentemente, delegara na irmã tudo o que dizia respeito à divisão dos bens paternos, seguro que estava, de que Deolinda jamais o enganaria. E também se libertava, está de ver, de uma série de trabalhos que a morte dos próximos sempre acaba por trazer àqueles que ficam vivos.

Tudo correra bem na constituição dos lotes para dividir.

O problema surgiu quando foi necessário chegar às coisas que o progenitor guardara, sem se perceber bem porquê, e que respeitavam à sua intimidade. Acontece com frequência àqueles que parece que nunca estão preparados para morrer.

Naquela gaveta havia de tudo. Postais, fotos, cartas, pautas musicais, bilhetes de espectáculos, um caracol de cabelo, enfim, um mundo que Deolinda nem sequer julga pudesse caber na imagem contida que tinha do pai. E, num grupo aparte, encontravam-se três embrulhos. Um constituído por cartas que a mãe escrevera ao marido; outro por cartas que a avó enviara ao filho e dois cadernos com histórias eróticas, cuja letra não deixava qualquer dúvida sobre o autor das mesmas. Finalmente, um diário com fechadura.

Deolinda nem queria acreditar que aquele pai severo, exigente e até seco, pudesse ser o autor daquilo que estava ali à sua vista. Hesitou em compartilhar com Marcelo o que descobrira. Depois decidiu que não o faria. Iria queimar tudo.

Mas não resistiu a ler uma carta escrita pela mãe. Não conseguiu acabá-la. Era demasiado íntima. Voltou a dar um laço na fita que desatara e resolveu que aquelas iriam para as mãos de quem as escrevera.

Faria a entrega no dia seguinte, pensou. Mas dormiu mal nessa noite. E, ao fim da manhã, dirigiu-se à casa materna e entregou à autora as ditas epístolas.

- Leste alguma?

- Li uma mãe. Mas nem sequer a acabei.

- Fizeste mal Deolinda. A intimidade dos pais só a eles diz respeito!

- Tem razão mãe.

- Então faz o que o teu Pai devia ter feito. Desfaz-te, em vida, do passado que morreu!

Helena

4 comentários:

  1. Já estava a sentir falta de uma das suas histórias.
    Gostei.
    Estou a ver se me desfaço de algum passado mas não é fácil, pois parece que nalgumas coisas está um pedaço de nós.

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  2. Querida Helena:
    Meus avós paternos, tiveram um namoro longo. Ele em Coimbra, onde tirou o curso de Direito, ela, em Lisboa. Como gostou da vida académica, ficou por lá, 10 anos. Ela, Penélope daquele eterno estudante, fez e desfez, o enxoval. Escreviam-se muito. Casaram, tiveram 6 filhos e ele deixou-a viúva, aos 44 anos. Criou os filhos, viu morrer dois, teve 10 netos,7 raparigas e 3 rapazes. Tinha dois cofres de ferro, onde guardava as cartas do marido.
    Depois dos 85 anos, pediu-me ajuda, para queimar as cartas. Abriu as caixas, tirou as cartas uma a uma, leu-as, leu-me pedaços, queimou-as. As lágrimas corriam, daqueles olhos verdes, que eu nunca vira chorar. Deu-me um dos cofres, que guardo religiosamente. As minhas cartas e de meu marido, estão à espera, de num dia breve, as queimemos. Não quero que ninguém as leia. São só nossas. Meus pais queimaram as deles, no dia dos meus 25 anos. Não sei o porquê da escolha do dia. Talvez ela já sentisse a morte, que a levou 2 anos depois.
    Desculpe o testamento, Helena. A sua história, levou-me longe.
    Beijo
    Maria

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  3. Respostas
    1. Querida Helena:
      Todas as histórias de amor são lindas. Até aquelas que acabam mal. Nada apaga as lembranças de um grande amor.
      Na minha família há muitas de todos os géneros. Algumas já as contei. Com toda a espécie de fins.
      O Amor é lindo!
      Beijinhos de uma velhota de 67 anos, que ainda ama, como se tivesse vinte.
      Maria

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