domingo, 20 de fevereiro de 2011

A intimidade dos Pais

Nunca conhecemos bem os nossos pais, pensava Deolinda depois de ter arrumado a última gaveta dos objectos pessoais daquele que lhe dera a vida. No meio da sua tristeza pela perda que acabara de sofrer, também sentia um misto de pasmo e de irritação pelo que, sem querer, lhe tinha vindo parar às mãos.
Os pais haviam-se divorciado quando eles eram pequenos. Deolinda não tinha qualquer lembrança deles enquanto casal. O irmão, Marcelo, ao contrário lembrava-se bem e havia sofrido muito com a separação paterna. Ele ficara com o pai e a irmã ficara com a mãe. Mais tarde, quando a mãe se voltou a casar e teve que ir com o marido para o estrangeiro, haviam de voltar a juntar-se na casa paterna. De facto, por causa dos estudos, o pai, nessa altura, tomou conta de ambos.
Marcelo inteligentemente delegara na irmã tudo o que dizia respeito aos bens paternos, seguro que estava, de que Deolinda jamais o enganaria. E também se libertava, está de ver, de uma série de trabalhos que a morte dos próximos sempre acaba por trazer àqueles que ficam vivos.
Tudo correra bem na constituição dos lotes para dividir.
O problema surgiu quando foi necessário chegar às coisas que o progenitor guardara, sem se perceber bem porquê, e que respeitavam à sua intimidade. Acontece com frquência àqueles que parece que nunca estão preparados para morrer.
Naquele gaveta havia de tudo. Postais, fotos, cartas, pautas musicais, bilhetes de espectáculos, um carcol de cabelo, enfim, um mundo que Deolinda nem sequer julga pudesse caber na imagem contida que tinha do pai. E, num grupo aparte, encontravam-se três embrulhos. Um constituído por cartas que a mãe escrevera ao marido; outro por cartas que a avó enviara ao filho e dois cadernos com histórias eróticas, cuja letra não deixava qualquer dúvida sobre o autor das mesmas. Finalmente, um diário com fechadura.
Deolinda nem queria acreditar que aquele pai severo, exigente e até seco, pudesse ser o autor daquilo que estava ali à sua vista. Hesitou em compartilhar com Marcelo o que descobrira. Depois decidiu que não o faria. Iria queimar tudo.
Mas não resistiu a ler uma carta escrita pela mãe. Não conseguiu acabá-la. Era demasiado íntima. Voltou a dar um laço na fita que desatara e resolveu que aquelas iriam para as mãos de quem as escrevera.
Faria a entrega no dia seguinte, pensou. Mas dormiu mal nessa noite. E, ao fim da manhã, dirigiu-se à casa materna e entregou à autora as ditas epístolas.
- Leste alguma?
- Li uma, mãe. Mas nem sequer a acabei.
- Fizeste mal, Deolinda. A intimidade dos pais só a eles pertence!
- Tem razão mãe.
- Então faz o que o teu Pai devia ter feito. Desfaz-te em vida do passado que morreu!

Helena

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