quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

Acontece...


Conheceram-se nos anos sessenta, em rescaldo de duas separações sentimentais. Ele intelectual artista, utópico, culto, sedutor, oriundo do Algarve. Ela, jurista, actualizada, excelente profissional, defensora dos direitos do género, pragmática, oriunda do Norte.
Militantes ambos de movimentos juvenis, sonhavam alto e eram conhecidos no meio cultural burguês onde tinham nascido. Um de esquerda, como convinha a um utopista. Outro de direita, realista, como convinha a quem se serve da lei para distribuir a justiça.
Nada parecia aproxima-los, a não ser o sentimento de orfandade que, por norma, acompanha as rupturas emocionais. Mas ambos se apaixonaram. Não um pelo outro, mas sim pelo retrato que cada um fazia do outro.
Ela já a trabalhar, era o sustento da casa. Ele a preparar um doutoramento, só pensava na tese que defenderia brilhantemente. Sem filhos foram, durante uns anos, o modelo dos seus pares.
Até que, um dia surgiu um convite para que o artista expusesse numa galeria de New York. Irrecusável, claro. Ele foi. Ela ficou. À espera que, terminado o evento, ele voltasse. Não voltou. Nem sequer para o divórcio que a deixou numa depressão que só um internamento hospitalar conseguiu debelar.
Ela, a forte e pragmática, perdera-se na fragilidade dele. Ele refizera-se nos braços de outra mulher, noutro país, noutro mundo.
De vez em quando chegavam-lhe notícias de uma carreira revolucionária que iniciada aqui acabaria por desenvolver já longe. Depois a notícia, de contornos confusos, que havia sido preso. Nada mais.
Os anos passaram, as notícias desapareceram. E, numa tarde de Dezembro, na véspera de Natal, alguém bateu à porta. Sem prendas ou ar festivo, um jovem que aparentava ter vinte anos, apareceu. Para lhe entregar um embrulho que, pediu, abrisse na sua presença. Era um monte de cartas dela e uma aliança enroladas numa fita vermelha.
Incrédula, olhou para o portador que, num precário português, lhe disse que era filho do destinatário das missivas. A mãe e o pai haviam desaparecido. E ele vinha cumprir o desejo deste último...
Como a história não se escreve e o futuro não se adivinha, hoje são grandes amigos!

Helena

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

O condomínio


Era um condomínio de luxo. Naqueles em que para se comprar ou arrendar casa, é necessária a prévia aprovação dos outros condóminos. Portanto, não bastava ter dinheiro. Era preciso ter nome, pedigree.
Dinheiro ele até tinha bastante, porque era jogador de futebol, essa nova classe social, que ganha num dia o que cem trabalhadores não ganham em toda a vida. Mas não tinha o porte, nem falava como os restantes eventuais vizinhos. E ostentava, justamente, o que os outros escondiam.
A situação estava a tornar-se complicada. O Chéu - era este o nome porque era conhecido no meio futebolístico - já fora a várias entrevistas, já mostrara uma mala com dinheiro, já sacudira o Rolex de ouro no braço, já ostentara o brilhante de nove quilates no dedo mínimo, enfim, não podia expor mais a sua grande fortuna, na tentativa de convencer os dois administradores que seleccionavam a sua admissão.
O problema maior era a família que vinha da terra para passar as Festas com ele e, a quinze dias do Natal, o alojamento de todos não se encontrava ainda resolvido, o que retirava a Chéu o prazer de mostrar como a sua vida mudara. Conversa para aqui, conversa para ali, suborno incluído, nada demovia um dos examinadores que não se convencia perante o exibicionismo das toillettes do casal e a sua simultânea dificuldade de expressão. Não, eles não pertenciam à upper class que ali habitava. Impossível admiti-los sem criar grandes problemas àquele tipo de vizinhança!
A noite de 24 de Dezembro aproximava-se e Chéu já não sabia onde passar as Festas com a Família, que se deslocava num autocarro, que ele fretara para o efeito. No dia 23, numa última reunião em que o preço da casa havia inclusive subido, o contrato continuava por assinar.
Perante a debacle iminente, um dos administradores resolveu dar uma ajuda para a noite da consoada e sugeriu que Chéu ficasse instalado na zona dos empregados, onde havia uma casa disponível, até que a autorização de compra se tornasse definitiva.
Colocado perante o risco de não ter onde alojar os seus, Chéu acabou por aceitar, com a garantia de que na passagem do ano tudo estaria a postos para maravilhar os familiares.
Lá se arrumaram todos como puderam e iniciaram o repasto. Mas, a meio da refeição, quando se começavam a fazer os discursos a parabenizar o casal pelo sucesso que obtivera, uma tia idosa, que já não media as palavras, porque as medira toda a vida e desistira dessa contenção, exclamou:
- Ó Chéu, tu desculpa lá, mas é a este buraco que tu chamas casa?
A família ia morrendo, embora no íntimo, todos pensassem que aquela era mesmo a sua mansão, que ele disfarçara quando lhes dissera que era dos empregados.
- Sabes, filho, ainda vais ter que aprender muito. Bater bem na bola não é garantia de bater bem da cabeça. Tem juízo, enxerga-te, manda-os à vida e não fiques aqui. Vai para onde te aceitem pelo que vales e não pelo que não és.
A tia já morreu. Chéu percebeu a lição e encontrou outro condomínio onde quase todos se conhecem e onde todos se aceitam.

Passaram quinze anos sobre esse Natal. O condomínio de luxo faliu e quando lhe propuseram comprar a sua antiga casa por metade do preço, Chéu respondeu-lhes que não, que nenhum dos condóminos passava no seu exame de admissão...

Helena

Nota: Este conto de Natal foi um pedido da Lisa. Não tem lareira, nem presépio, nem Pai Natal. Mas tem a vantagem de ser quase verídico!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Antigamente...


Era já época de calores abrasivos. A pauta marcava seis alunos para as orais da parte da tarde. A professora, a doutora Elvira, vinha esbaforida de calor e, para mal dos seus pecados, o ar condicionado da sala de aulas, funcionava de modo intermitente. Estavam assim reunidas as condições menos felizes para discentes e docentes.
A primeira aluna não se portou mal e saíu com catorze valores. O segundo levou dez, mas se estivesse mais fresco, talvez não tivesse passado. O terceiro reprovou e nem à oral devia ter ido. Foi uma daquelas repescagens a que, numa segunda visão de notas, se resolve dar o benefício da dúvida.
A quarta, menos mal, conseguiu um doze sem custo. O problema surgiu com o quinto, Alexandra, cujas capacidades a professora conhecia bem de um ano de trabalho com qualidade acima da média.
A aluna entrou na sala e sentou-se na cadeira. Elvira examinava, com atenção, a sua caderneta escolar. Durante algum tempo, esteve a folhea-la para se aperceber das classificações tidas nas outras disciplinas.
Demorou um pouco nesse seu interesse, enquanto se esforçava, com um leque, por diminuir a temperatura do corpo.
Quando decidiu começar o interrogatório, sentiu que a jovem não estava bem. Por isso, começou com questões simples para a pôr à vontade. Mas tal não surtiu grande efeito. A boca de Alexandra não se abria e a sua testa ia-se enchendo, cada vez mais, de gotas de suor.
- voce está doente?
-não. Não estou. Pode continuar, setôra
- veja lá se quer interromper o exame e faze-lo depois do seu colega
- não setôra, obrigado.
O exame prosseguiu mas Alexandra não havia meio de emitir qualquer som. Estava a ficar demasiadamente afogueada e o rosto ia ficando perlado de suor.
Receando que algo acontecesse, Elvira mandou evacuar a sala e fechar a porta.
A sós, depois de lhe dar um copo de água, disparou:
- ó Alexandra, diga-me lá o que é que se passa, agora que estamos aqui só nos as duas.
- não é nada setôra
- bom, então vamos ao posto médico.
Nesse preciso momento, a rapariga começou a chorar convulsivamente e de modo atrapalhado, balbuciou:
- é que a setôra estava a ver que eu sou filha ilegítima...
- Como? O que é que está dizer? Por favor, acalme-se e fale devagar.
Foi então que, entre soluços ela revelou que entendera que a professora, ao demorar tanto a ver a sua caderneta, se tinha apercebido da sua situação de filha ilegítima e se sentira muito diminuída...
- Alexandra eu estava, apenas, a ver as suas outras classificações. Nada mais. Mas aproveito para lhe dizer uma coisa: "os filhos nunca são ilegítimos. Os pais é que podem sê-lo". Vá em paz e descanse um pouco. Conheço o seu trabalho. Vou fazer-lhe o exame no fim de todos os seus colegas.

Esta estória passou-se há cerca de trinta anos, quando na lei portuguesa se consentia o uso daquela bárbara expressão jurídica!

Helena

domingo, 11 de dezembro de 2011

Às vezes, a quatro!


Adélia tivera sempre dois homens. Um conhecido e fixo, o marido de toda a vida. O outro, variável, ao sabor dos estados de alma, jamais apresentado e cuja existência era apenas conhecida dos mais próximos.
Adélia era feliz nesta periclitante situação, com a qual lidava sem qualquer problema moral. Para ela tudo se resumia numa questão de diversidade amorosa e ria-se sempre daqueles que a censuravam, mas no fundo só desejavam ter a coragem de fazer o mesmo.
A sua única reserva era não se envolver com colegas de trabalho e ser para André, seu marido, uma fonte a alegria e bem estar, que embora fosse carregada no exterior, era com ele que ela a partilhava.
André era também um homem feliz. Por várias vezes se questionara se a vida que proporcionava a Adélia não seria pouca coisa em relação aquilo que ela poderia desejar. Mas vi-a sempre tão satisfeita, tão atenciosa, tão ligada a ele, que só podia ser amor aquilo que os unia. Se ele nunca a enganara, porque não faria ela o mesmo? E o assunto deixou de o preocupar...
Até que surgiu Matilde na vida dele. Era uma cópia de Adélia, mas com menos quinze anos em cima. E mostrava que gostava dele, sem qualquer rebuço.
Uma tarde que ficaram a trabalhar até mais tarde, Matilde avançou. André ainda tentou um atrapalhado:
- mas eu sou casado e feliz.
- eu sei, mas não estou a querer casar contigo. Quero apenas fazer-te mais feliz.
E fez. Na realidade a vida de André deu uma volta. Agora sim, ele sentia que era finalmente para Adélia o marido que ela merecia, mais alegre, mais solto, mais descontraído e, sobretudo, mais apto.
Adélia perguntava a si própria o que teria levado André a tamanha transformação. Não fora ele um homem tão sério e ela diria que havia outra mulher. Mas com André tal não era possível.
O que é certo é que o seu novo homem a esgotava. Tanto e tão bem que, agora, era ela que não tinha tempo nem vontade de procurar satisfação noutros braços.
Numa tarde André disse-lhe que gostava de convidar para jantar a sua nova colega e o marido. Adélia não se fez rogada e na data aprazada lá se encontraram todos.
Adélia ia sucumbindo. Só podia ser castigo. O marido de Matilde era, justamente, o seu último amante!
Recomposta, foi uma dona de casa perfeita. Que percebeu, finalmente, a boa disposição do seu marido. Afinal era a felicidade de ambos que estava em causa e tinha um segredo comum... que iria continuar a sê-lo.

Helena

A bigamia tranquila


A luz do quarto era coada, própria daqueles fins de tarde de Outono, de que Joana tanto gostava. Era um Domingo igual a tantos outros que ela já passara. Na cómoda um ramo de rosas bebia a agua do pote de vidro transparente em que estavam acomodadas e libertava o odor característico de quando acabavam de ser colhidas.
A roupa, abandonada na cadeira de veludo e no chão, indicava bem a pressa de quem a despira. Lá longe, vindo de fora, um vozear de crianças e adultos era prova de vida.
Joana enrolou-se bem no edredon para, alguns minutos depois, começar finalmente, a espreguiçar-se debaixo dele. Que horas seriam, pensou. Mas a preguiça que ainda a dominava, superou a curiosidade de olhar o relógio no outro lado da mesa de cabeceira. E assim continuou, com pequenos gestos anímicos, durante alguns minutos mais.
Finalmente lá rodou o corpo para o outro lado da cama. A almofada, enorme, amachucada, ainda tinha o cheiro do corpo do Guilherme. E ela enterrou o rosto nela como se, com esse gesto, trouxesse de volta um pouco dele, da tarde de domingo que ele sempre lhe dedicava.
Olhou as horas - sete e meia - e reparou que ele se havia esquecido do seu
belo IWC que o banco lhe oferecera por vinte e cinco anos de dedicado trabalho.
Quase tantos como aqueles que ela lhe dedicara de vida, contados pelas tardes que, no dia de descanso, entre as três e as seis horas, ele lhe concedia desde que passara a acumular com as funções de secretária, a de amante exclusiva.
Fora esta a sua vida desde que, aos vinte anos, fora seleccionada, para ser a sua sombra. Hoje tinha quarenta e dois, o Guilherme e o emprego. Nada mais!
Às vezes julgava que era pouco, que tinha direito a muito mais, depois de lhe ter entregue tudo, até a sua virgindade. Mas o que mais a desgostava não era o que lhe dera. Era o que ele lhe tirara. De vida, de convívio, de amizade. A que inicialmente ela não reagira - era, afinal, uma forma de ele a amar, pensava - mas que agora, acentuava profundamente a vida solitária que levava e ele tanto apreciava.
Quantos Domingos representavam vinte e três anos? Mil e muitos, com certeza, calculou. Estava nestes pensamentos quando a fechadura da porta do quarto girou. Assustou-se. Afinal era Guilherme que voltava para levar o seu relógio.
- querida, descansa. Não quis acordar-te, mas esqueci-me do relógio. Deixa-te estar. O quarto está pago como sempre até amanhã. Porque não ficas aqui e vais directa para o banco?
Manda vir o jantar e vê a televisão. Hoje há o Marcelo. Sempre te distrais.
Adeus querida. Até amanhã. A Carolina já está à minha espera e eu atrasado.
Ah! Não te esqueças do processo do seguro que está quase em cima da hora.
Deixa-mo logo que chegares, na secretária. Fica bem!
- Fico bem. Mas com saudades tuas...

Helena

sábado, 10 de dezembro de 2011

Lembras-te, meu amor?


Meu amor
Eu sei que tu não queres que eu te escreva, porque as minhas cartas te irritam. Mas que queres? Eu não tenho outra obsessão que não sejas tu, que estás entranhado em cada poro da pele deste meu corpo que te entreguei e jamais será de outro.
Lembras-te, amor, das nossas tardes de paixão, ao fim de semana, na casa das Azenhas do Mar, em que o ruído do bater das ondas apenas amortecia os teus gritos de prazer?
Lembras-te, amor, de quantas vezes nos entregávamos, quase sem interrupção, as tuas mãos percorrendo o meu corpo que lhes respondia, sôfrego, numa convulsão final, que afinal o não era, porque outra e outra lhe sucedia, sem que disso tivéssemos consciência?
Lembras-te, amor, dos nossos corpos suados, no inverno, quando me possuías com paixão, consumida ao ritmo que imprimias ao teu prazer, que procurava o meu e nele se fundia?
Lembras-te, amor, dos beijos com que presenteaste cada parcela de mim, como se o meu corpo fosse uma estrada sem fim, que recomeçava e continuava em cada esquina de mim?
Lembras-te, amor, quando fiquei exangue no dia em que me confessaste que outra mulher havia tomado um novo lugar - o meu não, esse, jamais podia ser - no teu coração e me sugerias que fora a minha obsessão que ditara o nosso fim?
Lembras-te, amor, que sempre me disseste que eu era unica e que o seria até ao fim da tua vida que, sem mim, não teria, mais, significado?
Lembras-te, amor, de quem nós fomos, de quem nós éramos, nessa época? Lembras-te de mim?
Eu sei que não, que não te lembras, já, desta mulher de quase sessenta anos - os teus, também- que, numa dada altura, teve vinte, a idade daquela que, neste momento, ocupa, habita a tua vida.
Mas eu quero que, quando a tiveres nos teus braços, me recordes nesse tempo, que a minha imagem se sobreponha à dela e que seja eu, de novo, que tu estejas a amar. É por isso que te escrevo esta carta. Para que, quando a possuíres, seja eu que tu possuis.

Sempre tua
Amélia

quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

As novas tecnologias


Virgínia tinha hoje cinquenta anos, três casamentos, três divórcios, duas filhas e um filho já independentes. Bom, independentes, é uma forma de expressão porque, embora ganhassem mais do que ela, também gastavam em proporção, pelo que a sua conta bancária nunca estava ao abrigo dos desvarios filiais.Era nisto que ela pensava quando, estafada, chegou a casa com uma carta na mão.
Ainda não conseguira habituar-se completamente ao ruído dos seu saltos no chão de madeira, pese embora viver sozinha, fosse a sua sina há já uns anos.
Olhou-se ao espelho do hall e sentiu em cima dela mais vinte anos.
Tinha fome mas pouca vontade de cozinhar. Acabou por tomar um chá e uma torrada e ficar a olhar, embrutecida, a televisão. Há anos que era assim...
Irritada, pensou ser chegada a altura das grandes decisões. Para grandes males o melhor eram os grandes remédios, ou, traduzindo por miúdos, a net.
Na sua página do Face contava já com dois mil amigos. Era preciso saber escolher e depois avançar. Afinal, a Rita, uma grande amiga, era aí que encontrava os homens da sua vida. Porque não tentar ela também?
Primeiro seleccionou os que tinham foto. Depois, os que tinham idade próxima da sua. De seguida, aqueles que manifestassem interesses comuns. Seleccionou dez.
Criou um texto mensagem que lhes enviou e ficou à espera. Todos estavam em chat. Seis responderam logo. Destes, três pareceram-lhe vias possíveis. A eles começou a revelar-se aos poucos.
Um perdeu-se ao fim de poucas noites. Mas os outros dois tinham, de facto, interesse. Por isso manteve-os até que o inevitável pedido de encontro veio à baila.
Porque não, pensou? Era apenas preciso decidir por qual começar . Não era fácil, porque ambos haviam sabido salgar as suas noites. Mas, perante a pressão, decidiu tornear a questão e propôs o uso prévio do Skype para o reconhecimento físico. E assim fez. A proposta foi aceite para o sábado seguinte, à noite.
Chegado o momento esperou que ring ring do computador tocasse. Às 21h30 precisas, como combinado, Pero Maduro, nick name do encantador de almas solitárias, apareceu no ecrã do seu PC.
A comoção, a surpresa e a irritação de ambos não podia ser maior. Do outro lado estava o primeiro ex marido da nossa protagonista, o pai dos seus filhos. Com mais uns quilos em cima, claro, e menos uns tantos cabelos na cabeça.
-Tu, Virgínia?!
- Eu sim, porquê?
-Então, és tu a serpente maliciosa?
- Sou eu, sim Francisco. E tu és o Pero Maduro?!... Só a mim!
- Só a ti, não. Só a mim, direi eu.
- E a tua mulher?
- Dorme.
- Ah!
Ambos desligaram o Skype. As novas tecnologias também podem trazer velhas surpresas!

Helena

Os alcatruzes da nora


Nada na vida uniria aqueles dois. Um quase analfabeto e de gente humilíssima, que lhe havia incutido a subserviência como forma de defesa das agruras que os ricos e poderosos sempre lhes traziam. Manel cresceu neste ambiente.
Maria, ao contrário, já no ventre da mãe sentia as diferenças de tratamento. Médicos de primeira e clínicas de luxo. Pais licenciados, cultos, socialmente de primeira casta, apesar de serem republicanos, intelectuais de esquerda e amantes de tudo o que o dinheiro pode comprar.
Por azares da vida, ele nasceu nasceu no meio da vinha, num parto naturalíssimo, e o leite que o alimentou foi misturado com as sopas de vinho que também emborcou.
Ela nasceu de forceps, num parto que ia pondo em risco quer a mãe quer a filha, e foi amamentada pelos leites de uma ama contratada para o efeito, não fosse o acto destroçar os belos seios da progenitora.
Ambos viviam no Alentejo e aí foram crescendo não tão distantes um do outros como este registo classista poderia fazer supor. Porque nem todas as crianças são sensíveis à herança genealógica paterna.
Mas quando Maria veio estudar para a capital deixaram de se ver.
Manel tornara-se num revolucionário empenhado em mudar as condições de vida da sua terra. Maria apenas queria exercer medicina, fossem quem fossem os doentes. Por isso feito o internato retornou às origens.
O 25 de Abril haveria de inverter os papeis. Manel tornou-se o homem forte da terra. A família de Maria viu tudo o que tinha ocupado e destruído. Os pais não resistiram e um morreu atrás do outro.
Maria trabalhava, agora, por favor de Manel, no posto médico. Manel fizer das propriedades de Maria, uma das maiores cooperativas daquela região.
Nunca se sabe ao certo o que a vida nos prepara. Mas uma coisa é certa. O que é mau para uns é, por norma, bom para outros. Ou, dito de outro modo, os alcatruzes da nora não estão sempre no mesmo sítio. Umas vezes estão em baixo. Outras vezes estão em cima. Feliz ou infelizmente...

Helena

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

A aspirina


A carrinha dos medicamentos parou na Infante Santo, à porta da farmácia. O descarregador tirou um caixote e colocou-no corredor, para depois ser tudo conferido pela D. Alice, que adorava fazer aquele trabalho.
A aspirina efervescente na sua embalagem de prata sentiu que a caixa onde se alojava ficara mais leve. De facto, haviam-lhe tirado de cima um outro caixote bem pesado.
Algumas horas depois a D. Alice lá arrumou a sua caixa na prateleira. Agora, só faltava que algum cliente mais dolorido ou engripado a pedisse, para ela sentir que tinha utilidade. Claro que sabia que só possuía 500mg e que havia irmãs suas com o dobro dosagem e, admitia, o dobro da eficácia.
Mas tinha esperança de que alguém a preferisse, a desejasse só a ela.

- uma caixa de aspirina, D. Alice, por favor. Estou a começar a chocar qualquer coisa. Sinto o corpo todo moído.
- de 500 ou de 1000, senhor José?
- pode ser de 500.
- aqui tem.
-obrigado. Junte à minha conta, por favor.

Finalmente encontrara alguém que lhe iria permitir cumprir o seu destino, pensou a aspirina. Mas estavam tantas em cima dela, que não acreditava que fosse naquele dia que lhe pegariam.
José entrou na pastelaria, sentou-se na mesa e pediu um café e um meio copo de água. Quando tudo já estava servido, abriu a caixa do remédio.
O empregado, ao passar e sem querer, deu um pequeno encontrão no braço do cliente. O conteúdo caiu no chão. Aflito, pediu imensa desculpa e correu a apanhar cada uma das carteiras prateadas que se haviam espalhado. Depois de arrumadas, por um bambúrrio da sorte, a nossa protagonista ficou em primeiro lugar.
Devagar José pegou-lhe, rasgou a prata e lançou o pó no copo de água. A dissolução foi lenta, ao jeito da heroína que se sentia desfalecer e, ao mesmo tempo, rejubilava por cumprir o seu destino, deslizando pela garganta de José.
Este, de seguida, bebeu o café, pagou e saíu. A caminho do escritório já se sentia melhor. A aspirina exalara o último suspiro, os seus componentes misturaram-se com os de José e ela deixou, por fim, de existir.
Há sempre quem, devotadamente, se dedique a aliviar a dor dos outros...

Helena


sábado, 3 de dezembro de 2011

A parure


Era um homem gordo e, como a maioria deles, de apurado sentido do humor. Jurista de formação, dividia tempo e talento por uma Universidade onde era professor e pela administração de uma respeitada instituição bancária.
Nesta última função dispunha de carro e de um fiel motorista, profundamente conhecedor da sua agenda pessoal e profissional.
À época - a história, de contornos verídicos, passava-se no princípio dos anos setenta, e antes da revolução dos cravos, onde ambos os homens haviam de ser saneados -, a roupa interior era muito apreciada pelas damas.
O Professor Acácio tinha, como era então tradicional, uma mulher legítima, e outra legitimada pelos anos do convívio. Durante a semana laboral dividia-se. Ao almoço, estava sempre com esta última, e ao jantar, por norma, ficava com a primeira. Horário que, por norma, se invertia aos fins de semana.
D. Clara, mãe dos seus seis filhos, era uma roliça satisfeita. D. Odete, ao contrário, era uma esbelta mulher, que ele conhecera ainda muito jovem e que lhe aparecera como secretária, dois anos após o matrimónio, quando começara a esfumar-se o fogo da paixão.
O secretariado durou pouco, claro, porque Acácio não queria Odete partilhada na cobiça dos clientes privilegiados do banco. Assim "pôs-lhe casa" e Odete passou a ser teúda e manteúda pelo banqueiro. Diga-se em boa verdade que, à excepção dos filhos, qualquer delas gozava dos mesmos benefícios.
Num dos almoços, Odete manifestou vontade de possuir uma "parure" - nome dado ao conjunto de cueca e soutient - de renda negra que se vislumbrava numa das montras da Loja das Meias, ao Rossio.
Acácio não esqueceu a sugestão e, no dia seguinte, encomendava duas, uma de medida 38 e outra de medida 46. Iguais, mas em caixas separadas. Depois escreveu dois cartões com palavras de amor, e encabeçados ambos por "meu amor", que mandou distribuir por cada um dos embrulhos.
Chegado ao banco chamou o senhor Marques, o fiel motorista para que este procedesse à entrega. Mas esperava-o uma surpresa. Quem estava de serviço era o Garcês, porque o colega adoecera com uma gastrite.
Face à nova situação, Acácio encarregou-o do trabalho, explicando bem que um embrulho era para sua casa e outro para a morada que lhe deu.
Ao fim do dia, o motorista esclareceu-o de que havia cumprido as suas ordens. Quando chegou ao domicílio conjugal, Clara havia saído. Entraria pouco depois, dando-lhe um grande abraço.
- Meu querido a parure era linda. Mas , amor, tive que ir à Loja das Meias porque estava muito pequena. Vê tu a sorte. Não havia o meu número e, nesse instante, entrou uma senhora muito simpática, a quem acontecera justamente o contrário.
- Olha, acreditas em coincidências? O número que ela tinha era o meu. E o que eu tinha era o dela. Por isso, fizemos a troca e acabámos por dar até um abraço, quando descobrimos que ambas éramos casadas com um Acácio!
- Que sorte, minha querida. E não disseram mais nada?
- Não, Acácio, porque eu estava ansiosa por vir para casa estrea-la contigo!

Helena

Nota: Esta história foi uma promessa feita ao meu amigo e comentador Henrique Antunes Ferreira

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

Corpo e alma


Ela soube, naquele momento, que tudo havia terminado. Soube-o, porque nesse instante a sua alma abandonara o seu corpo. Tudo o resto não tinha mais importância.
Ester perdera-se nos braços de Jaime no preciso momento em que o seu olhar se cruzou com o dele. Foi num fim de tarde de Outono, no bar de um hotel. Nessa altura a conversa entre ambos não foi mais do que simples pretexto para o que horas depois entre eles se passaria.
Paixão imediata? Desejo incontrolável? Não saberia responder. Nem hoje, sequer. Foram seis meses de reboliço na sua vida até à passagem por um registo, fácil, de casamento.
Trinta anos durou o matrimónio registado. Mas ela sabia que ele acabara muitos anos antes. Lá atrás, numa outra tarde de Outono, parecida com esta em que ela se encontrava depois de vir do funeral do marido.
A paixão, alimentada pelo desejo, durou bastante. Mais do que os livros dizem ser habitual. Depois, suavemente, amansou. Mas continuou a tonificar-lhe o corpo como uma vitamina que se toma regularmente para manter o bom estado físico.
Até que um dia, talvez uma noite, já não se lembrava bem, algo aconteceu. E disso, desse momento exacto, ela lembrava-se bem.
Jaime procurara-a para se satisfazer e satisfazê-la também. E ela, nos seus braços, nesses braços onde outrora dera vazão ao seu ardor, teve aquela estranha sensação de que a sua alma se separa do seu corpo. Já não era Ester que estava ali.
E já não foi mais ela que, nos anos que se seguiram, o marido encontrou. Foi o seu corpo físico que ele continuou, até ao fim, a possuir. Não ela inteira, não a sua alma. Nunca mais, até aquele instante, em que Ester sentia que acabara de a recuperar!

Helena

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O castigo


A história passa-se nos anos sessenta. Natália e Vasco viviam com a mãe em casa dos avós, depois de um divórcio que, na época, não havia sido simples para ninguém. A garota tinha seis anos e o rapaz tinha doze.
A família materna, oriunda de uma média burguesia, encarou aquela situação de forma um pouco dramática, o que não admira muito, face aos valores da sociedade de então.
De facto, divórcios não eram correntes na altura e, por isso, a matriarca decidiu que o trio familiar deveria retornar à casa paterna e aí levar uma vida recatada para calar as más línguas.
Mas Rita, a jovem mãe, tinha trinta anos e não esperava, nem queria, ficar sozinha o resto da vida. Era uma mulher atraente que casara aos 17 anos com um homem com o dobro da sua idade e que se sentia com o direito a viver.
Por isso, quando, dois anos depois, conheceu Armando que, curiosamente, era uma década mais novo que ela, não se fez rogada aos seus avanços. Estes viriam a concretizar-se numa vida em comum - um escândalo - meses depois.
As crianças, essas, ficaram a viver com os avós. Mas o pai delas quis, alguns meses depois, ter o rapaz consigo, argumentando que considerava importante que um adolescente tivesse a seu lado uma figura parental, para poder ter um desenvolvimento psicológico saudável E o juiz deu-lhe razão.
Assim os irmão ficaram separados. Mas não foi por muito tempo. Com efeito, Rita, entretanto, casara com o companheiro e ambos foram para França, onde este último fora colocado.
Para prosseguir os estudos, Natália acabou por se juntar ao irmão e ir viver para a casa paterna.
Não eram infelizes. Pelo contrário, diria até que tiravam da situação o melhor partido. O pai e a mãe não se digladiavam e o padrasto, que tinha por eles grande estima, acabava por ser o elo forte na ligação de todos.
Os anos foram decorrendo. Rita vinha regularmente a Portugal ver os filhos. Armando preferia ficar em Paris, uma vez que a sua família original, muito pequena, já havia desaparecido.
Vasco acabou o curso e foi, por sua vez, para o estrangeiro. Natália entrou para a Faculdade.
Ia fazer dezanove anos quando recebeu um telegrama da mãe a dizer que o padrasto viria a Lisboa em serviço e lhe pedia que o fosse buscar ao aeroporto. Desencontraram-se, porque nenhum deles se reconheceu.
Chegada a casa dos avós, Natália teve uma forte emoção. O padrasto não lhe ficou atrás. Ambos se sentiram imediatamente atraídos um pelo outro.
Ele deixara-a uma miúda e encontrava uma mulher. Ela deixara de ver nele o marido da mãe e estava face a um homem de trinta e poucos anos extremamente atraente. Foi uma espécie de coup de foudre.
Os dias que se seguiram, de convivência diária, só acentuaram uma situação que ambos sabiam perversa, mas cujo controle lhes estava a fugir das mãos.
De um lado, o desejo mútuo de um homem por uma mulher e, de outro, uma relação familiar colateral que proibia qualquer forma de contacto físico entre ambos.
Um dia a corda ia ceder, o desejo ia tomar forma. Natália decidira encontrar-se com Armando no hotel onde este se encontrava hospedado. Salvou-os um AVC. Um AVC provocado, como terá dito o médico, pelo stress do paciente, por alguma tensão a que estivesse submetido.
Armando nunca mais voltou a ser o mesmo. E Natália ainda hoje considera que foi castigo divino...

Helena

domingo, 27 de novembro de 2011

Uma mulher livre


Susana era uma mulher livre. Dez anos como hospedeira de longo curso fizeram dela uma pessoa com mundo, com interesses e com perspicácia.
Sabia que a carreira tinha duração limitada e que quando as primeiras rugas ou sinais de cansaço aparecessem, o seu destino seria a terra. Não aquela que a havia de comer, mas sim de um balcão a atender clientes que lhe iriam fazer sempre as mesmas perguntas.
Por tudo isto, queria chegar depressa a chefe de cabina, pois sabia que seria nos frequentadores masculinos da classe executiva que o seu destino se poderia jogar.
Assim nunca se fez rogada a jogos de cintura ou de corpo para atingir o topo da carreira antes de tempo. Um sorriso ao Comandante ou uma réplica mais ousada levaram-na ao director que decidiria - e bem - da sua promoção.
Ei-la com vinte e nove anos, num voo para os Estados Unidos da América. O segundo passageiro a entrar, entregou-lhe o sobretudo de cachemira. A ela pareceu-lhe o protótipo adequado. Não usava aliança e falava um inglês quase perfeito. O tipo físico lembrava o de um egípcio, mas a tez era mais clara.
Levou-lhe o champagne e perguntou-lhe se desejava algo mais. "Por enquanto não", foi a resposta. Mais tarde sim. Talvez você. Tudo expresso com a maior seriedade, sem que um músculo do rosto se movesse.
Nada mais se passou. Nada mais foi pedido. A bela hospedeira bem circulava. Mas nada. Nem reacção.
Quando aterraram e ela lhe ia devolver o casaco ele entregou-lhe um cartão de visita e foi-se embora. No dito estava um nome em caracteres que não conhecia e um nome em inglês do outro lado, onde, à mão estava escrita uma morada.
Susana, já fardada, hesitava. Deveria ir para casa ou dirigir-se ao que pensava ser um hotel? Tardou uns minutos e decidiu-se pela última hipótese. Era um hotel de luxo.
Quando se preparava para, na recepção, indagar pelo cavalheiro, um dos boys do bar veio ter com ela para lhe dizer que a esperavam no bar.
Foi uma noite esplêndida. Apenas interrompida, às cinco da manhã, pela polícia que irrompeu pelo quarto e o levou preso. Era um traficante de carne branca há muito procurado pela polícia...
Não foi nada fácil convencer as autoridades que ela fora, apenas, a companhia de uma noite. E quando o conseguiu, estava colocada como hospedeira de terra!

Helena

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

As palavras por dizer


Catarina nunca fora uma pessoa fácil. Tivera uma educação muito severa marcada por um pai tardio e uma mãe com metade da idade do marido, a qual fora, por sua vez, preparada para ser apenas a mulher de alguém e a sua dona da casa.
Ambas, mãe e filha, sempre desejaram ter uma vida diferente da que levavam e, talvez por isso, o seu relacionamento não era o melhor. Catarina culpando a progenitora da sua insatisfação. E esta última considerando que era por causa da filha que não tinha a coragem de romper com o seu modo de vida.
Uma fez-se mulher e a outra envelheceu. Em mundos separados que ambas desejavam juntar, mas sem nenhuma ser capaz de dar o passo.
Chegou a vez de Catarina dividir a sua vida com um colega de trabalho. E, por mais surpreendente que possa parecer, a escolha do companheiro recaiu sobre um homem que parecia ser o fiel retrato do pai que lhe coubera.
Talvez consciente desse facto, quando Inês nasceu, a mãe prometeu a si própria que a relação entre ambas seria diferente daquela que ela havia antes experimentado. De facto, tentou que assim fosse. Mas não conseguiu.
Inês parecia só gostar da avó materna, com quem mantinha um contacto muito próximo.
Quando esta morreu, a neta sentiu que lhe faltava o chão. Perdia o seu grande sustentáculo, a sua maior amiga, aquela a quem tudo contava. No fundo aquela que gostaria de ter tido como mãe.
E quando, num dia, Catarina fez uma derradeira tentativa de se aproximar da filha, esta reagiu, retorquindo que era tarde para as palavras que haviam ficado por dizer...
De facto, nem sempre é fácil sabermos qual o caminho escolher!

Helena

quinta-feira, 24 de novembro de 2011

A echarpe


Antónia tinha nas mãos uma echarpe vermelha, mescla de lã e seda de grande qualidade.
Uma lágrima furtiva corria-lhe pelo rosto. O pensamento, esse, voltara vinte anos atrás quando, adolescente ainda, vivia fascinada pela mãe que tinha. Ou melhor, pela forma como ela se vestia e se apresentava. Para uma garota adolescente que era considerada o patinho feio da família, a figura materna era a referência absoluta.
Mas comecemos pelo princípio. Antónia tinha uma irmã um pouco mais nova e dois irmãos mais velhos. A mãe, divorciada, tinha 47 anos e já apaziguara os ódios da separação. Trabalhava e pretendia refazer a sua vida com alguém que lhe permitisse um upgrading social e financeiro.
A família acoitara-se no lar dos avós maternos que, não sendo ricos, tinham as reservas de uma vida contida pela experiência de quem atravessou a guerra.
Era este o ambiente em que a protagonista ia crescendo. Não era infeliz, mas vivia na ansiedade de se parecer com a progenitora.
Um dia, Ivone resolveu reunir os filhos para lhes participar que ia casar de novo. Nada que os surpreendesse. De facto, sempre esperaram que tal acontecesse.
No início continuariam em casa dos avôs e, mais tarde, quando o novo lar estivesse pronto, iriam para lá. O padrasto, advogado de posses e sem descendência, não se opunha. Até fazia gosto.
Mostrou-lhes, na altura, entusiasmada, a lindíssima echarpe que ele lhe havia oferecido e que ela colocara à volta do pescoço, a embelezar o tailleur que vestira para ir a um concerto.
Horas depois desta conversa, a trágica revelação. Ivone havia morrido asfixiada pela echarpe que se havia prendido numa das rodas do descapotável que dirigia e que pertencia ao futuro marido.
Antónia limpou a lágrima furtiva e voltou a guardar a echarpe assassina...

Helena

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Uma questão de confiança


Conheceram-se na escola primária. Ela loira, olhos claros, despachada e com vontade bem firmada. Ele moreno, olho escuro, trigueiro, pacato.
Ambos bons alunos e interessados em aprender. A família do António viera de África, a quando da descolonização. A da Deolinda natural do Algarve, nunca de lá tinha saído. Gente modesta de ambos os lados, foi aqui que as duas famílias se encontraram.
Nada os destinaria um ao outro, a não ser o facto de terem feito escolhas curriculares semelhantes. Da escola passaram ao liceu - sim, quando tudo se deu ainda havia essa instituição, hoje ultrapassada pela Escola Secundária -, e deste à Universidade. Um e outro haveriam de escolher medicina.
Foi nesta rota que a amizade se estreitou e a decisão de unirem futuros se começou a esboçar.
Com efeito, no último ano resolveram fazer economias e juntarem-se na mesma casa. Aliavam, assim, o útil da partilha do teto - com o respectivo encaixe da receita -, ao agradável da partilha dos corpos. E, podiam até dar-se ao luxo de perceberem se, perante as diferenças respectivas, o que os unia era sólido. Não o foi, como se vai perceber. Ciúme e desconfiança corroem os alicerces mais rijos, como se sabe.
A relação manteve-se durante uns anos, mais concretamente até terem garantido o trabalho de cada um. Foi, então, que pensaram dar outra dimensão à família que já formavam, ensaiando a função de pais. A gravidez de Deolinda veio assim fechar um ciclo e dar início a um outro.
Tudo parecia correr bem. O lance fatal começou com o nascimento da criança. Que, para espanto de todos, veio cor de chocolate.
Foi um alvoroço de desconfianças. Como era isto possível, perguntava-se a família de António, sendo os pais de raça branca? Teria havido troca de crianças, chegaram a admitir. E, por fim, chegou a questão mais grave, aquela que punha em causa a seriedade de Deolinda.
Naquele momento, naquela altura, só havia uma forma de agir. Era urgente fazer testes e perceber que mulher era, afinal, a mãe daquela criança. Ou, dito de outro modo, averiguar se o filho era ou não, de António.
Como se pode calcular, isto era o princípio do fim de qualquer coisa tida por sólida. Fizeram-se os exames necessários. Não havia qualquer dúvida sobre a paternidade do pequeno ser. O que não se sabia e se descobriu, é que, afinal, ambos tinham tido trisavós de cor...
O mal estava feito. A confiança fora quebrada e nada do que veio a conhecer-se posteriormente foi suficiente para a restabelecer.
Afinal as leis de Mendel e as probabilidades que as mesmas estabelecem não são letra morta. Mas de nada valem, quando a infidelidade feminina é a admissão imediata...

Helena

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

Uma história de números


Tudo começou quando o símbolo de infinito - uma espécie de oito deitado - começou a mexer-se. Tanto gesticulou que acabou por se pôr de pé. Quando tal aconteceu sentiu-se diferente, sentiu-se outro. E estava de facto mais redondo, mais composto. Decidiu, por isso, tomar uma nova identidade. Passou a chamar-se oito. Mas sentia-se tremendamente só.
Copiando a capacidade de certos animais de se replicarem, imitou-os. Porém, a réplica teve algumas falhas e em lugar de outro oito nasceu um elemento a que chamou três, que lhe era em tudo igual, mas com interrupções no fecho das bolinhas que constituíam o seu corpo.
Mas o oito não ficou, claro, satisfeito com o resultado e resolveu repetir a façanha. Igualmente incompleta, a réplica configurou mais um número. Desta feita chamaram-lhe seis, cuja bola inferior estava bem, mas a superior, na vertical, apareceu reduzida a metade.
O seis era um número agitado e que preocupava bastante a família numérica em que nascera. Um dia brincou demasiado, deu uma cambalhota e voltou-se ao contrário. Foi, então, que libertário, se passou a chamar nove.
O clã ia aumentando e o oito estava a ficar velho. Por isso, disse ao três que era a sua vez de contribuir para o aumento do agregado. Enquanto primeiro filho e cumpridor, resolveu inovar. Juntou-se ao nove e trabalharam, com prazer, para o objectivo comum. Nasceu um belo espécimen, muito pequeno e roliço a que deram o nome de zero.
A partir daí aquele grupo sentiu que adquirira a possibilidade de se ligar entre si, como entendesse. Era toda uma nova filosofia de vida, que os mais novos trouxeram consigo... Era a liberdade sexual!
E se assim pensaram melhor o fizeram. Talvez de modo excessivo, porque se ligaram sem controle. E, de uma relação acidental entre o nove e o três nasceram logo dois gémeos que, não sendo embora unicelulares, eram bastante parecidos. Chamaram-lhes sete e quatro.
Estes, na altura devida geraram vida e criaram o um que, francamente, era uma boa mistura dos pais.
Porém, quando tudo apontava para que a família estivesse completa, o três - que era sentimentalmente bastante problemático - resolveu envolver-se com o sete dando, afinal, vida ao número cinco.
Este agregado viveu tempos tranquilos, até que ideias vindas de fora, lhes deram conhecimento de que o mundo inicial dos números tinha ainda múltiplas possibilidades a explorar para criar novas famílias.
Com efeito, os números não tinham que viver sempre sozinhos. Cada um deles tinha um imenso futuro à frente, arranjando-se de modos diversos.
Foi desta nova maneira de encarar a existência, que viriam a nascer outras famílias numéricas cuja variedade nunca mais teve limites...

Helena

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

As filhas do Comendador


O Pedro era o que se chama de um jovem bem apessoado. Nem bonito nem feio. Mas com uma enorme capacidade de chamar a atenção dos outros sobre si.
Como dizer? Nada do que fazia era extraordinário, mas tudo era visto como algo especial. Enfim, na prática conseguia tornar grandes as pequenas coisas. E julgava que sabia como se aproveitar disso...
Não teria uma especial vocação para o casamento, mas desconfiava que seria através dele que mais facilmente poderia alcançar um upgrading social.
Com efeito, considerava trabalhar como uma opção penível. Por isso, tinha já algumas pistas sentimentais bem estudadas para o efeito.
Na calha encontravam-se duas irmãs, filhas do Comendador Silva, que cumpriam à risca os seus desidérios. O problema era mesmo qual delas escolher.
Clara era bonita, mas não devia muito à inteligência. O que até podia ser, para ele, um benefício, pensava. Assim seria mais fácil controla-la.
Ana não era feia. Mas não tinha nada da graciosidade da irmã. Todavia, e em contrapartida, era a eleita do pai para a administração dos negócios. O que, para Pedro, era um factor importante.
Lá bem no fundo perseguia o sonho de todos os homens, que seria poder ter as duas e ficar com a administração do património do Comendador. Esta, sim, seria a situação ideal...
O tempo corria e Pedro não se resolvia. Cortejava ambas, crendo que uma não saberia da outra. Até que, um dia, ambas o chamaram para lhe fazerem a proposta de viverem os três.
Pedro não queria acreditar no que ouvia da boca das filhas do Comendador Silva, que ele sempre julgara prendadas e sérias.
Então elas explicaram-lhe que o Pai havia decidido que a primeira a constituir família seria a que ficaria a administrar os seus bens. Ora elas não queriam ter de escolher, nem contestar a decisão paterna. Assim, ficando ambas com o mesmo homem, o pai seria confrontado com uma situação em problema não se poria.
Pedro não estava preparado para aquela proposta de bigamia de "pegar ou largar". Tentou, por isso, negociar e encontrar uma solução alternativa. Mas não era fácil.
Quando, finalmente, percebeu que ou seria assim ou não seria nada, e se propôs aceitar a situação, um inoportuno AVC matou o velho Comendador, devolvendo às filhas a liberdade de não acatarem a decisão paterna. E com ela, a de prescindirem de Pedro... que, deste modo, e mais uma vez, foi o protagonista de uma "estória" banal que se tornou especial!

Helena

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Há dias assim...


Era uma tarde esplêndida de Outono. Um sol baixo, a rasar o chão, pontuava as cinco horas da tarde, que uma ligeira brisa tornava ainda mais agradável.
Joana estava estendida numa cadeira de lona na soleira do terraço da sua casa no Alentejo. Casa para onde fugia sempre que o trabalho permitia.
Quem a visse, olhos semi cerrados, o livro abandonado no regaço, pensaria que estava a dormir. Não estava.
Apenas recordava uma tarde igual àquela, no mesmo local e quase à mesma hora. Só que tinham passado quinze anos sobre essa data. Tarde na qual, segura de si e da sua carreira, dissera a Pedro que o seu lugar não era ao lado dele, que seguia para os Estados Unidos, mas em Lisboa onde pretendia fazer o seu doutoramento.
Hoje tem dúvidas sobre as certezas de então. Tem uma profissão de que gosta e onde é respeitada e admirada. Mas quando chega a casa, tarde, ouve os seus próprios passos. E isso começa a pesar-lhe.
Joana sabe que se tivesse ido com Pedro poderia estar a responsabiliza-lo por não ter uma vida profissional própria, por não ser, nesse campo, uma mulher realizada. Mas teria uma família, filhos, gente que a rodeasse de afecto.
Joana tem amigos e amigas que a estimam e gostam dela. Mas não tem o casulo que sempre desejou. É claro que teve outras oportunidades de constituir família. Mas o dilema pôs-se sempre e ela não conseguiu dar o passo necessário a uma tentativa de conciliar os dois mundos que tanto ambicionara.
Era nisto que pensava quando a aragem se tornou mais fresca e os últimos vestígios de sol desapareciam no horizonte.
Enroscou-se na manta que tinha na cadeira, e levantou-se murmurando baixo, para si própria, "há dias assim!".

Helena

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

O trio perfeito


Esta é uma história verídica. Apenas os nomes, o tempo e os locais foram alterados. E é a prova de como a realidade, por vezes, ultrapassa a ficção.
Na Faculdade de Letras, o Professor Matos era considerado uma das mais brilhantes mentes de que o corpo docente dispunha. Tudo nele transparecia harmonia. Nas suas aulas, sempre cheias, aprendia-se literatura moderna e o gosto de cada autor por razões que, por norma, passavam despercebidas aos menos habilitados.
Pouco ou nada se sabia da sua vida. Constava que tinha um filho, bom poeta, mas que escrevia sob pseudónimo. Não se lhe conhecia mulher nem estado civil. Tão pouco amizades especiais entre os colegas ou os discentes.
Essa aura de mistério aliada a uma natural discrição, faziam dele um dos homens mais cortejados da instituição. Mas Fernando Matos lidava bem com essa circunstância e não dava aso a quaisquer histórias.
Homem de sessenta anos muito bem conservados, o cabelo sal e pimenta e um olho azul de fazer inveja a qualquer nórdico, vestia quase sempre de forma casual chic, o que lhe aumentava, mais ainda, o sucesso pessoal.
Até que no ano de 1980 surgiu Laura, a sua melhor discípula de mestrado, aquela que se oferecia sempre para o ajudar, a que sabia tudo o que ele perguntava. Os colegas riam-se, porque conheciam a indiferença do professor perante tal tipo de alunas. O que não sabiam era da persistência desta nem da sua inteligência.
Com efeito, quando o ano terminou ela teve a mais alta classificação na cadeira. Decidiu, por isso, atirar-se ao doutoramento na área e pediu ao Prof. Matos para ser o seu orientador. Não havia como recusar.
E, ao fim de dois anos, Laura ganhava duas batalhas. Doutorava-se e casava-se com o mestre, passando a ter por enteado Alexandre, que tinha a sua idade e com quem foi criando laços de afecto que deixavam Fernando Matos agradecido e feliz.
Tudo o que o poeta escrevia era, agora, previamente apreciado por Laura, cujos conselhos se tornaram preciosos. E ela tinha em Alexandre o companheiro para tudo aquilo que Fernando, mais velho, dispensava.
Porém, numa ausência de marido que decidiu participar numa conferência do outro lado do Atlântico, o imprevisível aconteceu. E o previsível também...
Três meses depois, Laura estava grávida. De quem, ela não estava segura.
A questão que se lhe punha era não só saber quem era o pai e o avô, como decidir, não o sabendo, se devia contar ao marido o que se passara. E tornar, muito possivelmente, quatro pessoas infelizes.
Optou por não contar. Nem a um nem a outro. Os anos decorreram tranquilos. Laura quase se esqueceu da dúvida que a consumira tantos anos.
E só muito mais tarde, já viúva, quando necessitou de uma transfusão de sangue para a filha, é que teve a certeza de que o pai era Alexandre...

Helena

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

As redes sociais


Quanto tempo se escreveram? Nem eles próprios já sabiam.
A sua história começou na blogosfera, para ser mais explícita no Facebook. Não acredita? Mas é a mais pura das verdades.
Joana saíra magoada de uma relação. Para usar terminologia vulgar, fora "trocada". A expressão não é feliz, mas corresponde mais ou menos à realidade. Por isso fechara-se em casa sem vontade para ver ninguém.
Um dia uma amiga disse-lhe que fosse aos seus amigos do Face e escolhesse um, cujo perfil lhe agradasse e lhe deixasse uma pequena mensagem. Ao menos, podia conversar sem se preocupar, ocupando a mente e fazendo a catarse do insucesso amoroso.
Não deixou contudo de a avisar que se não fiasse nos rostos que às vezes nem sequer correspondiam à realidade. E foi assim que tudo começou com o João, ele também saído de uma ligação que não correra bem.
Começaram a escrever-se. E a entender-se. Passaram da rede social ao e.mail e deste ao telefone. Criou-se, deste modo, um laço cuja caracterização era difícil de definir.
Faltava o passo final de se encontrarem. Curiosamente, embora falassem disso, nenhum parecia verdadeiramente interessado em o dar.
Os meses correram ligeiros. Joana parecia encaminhar-se para a cura e João também. Habituaram-se um ao outro. E às longas noites a conversar. No fundo, começavam e terminavam o dia juntos.
A mesma amiga que a estimulara antes, dizia-lhe agora que deviam conhecer-se. Joana deu-lhe razão e fez a proposta de João vir a sua casa beber um café.
Combinado o encontro chegou o dia. E com ele a surpresa.
Quando se sentou na sala João pareceu incomodado. E minutos depois perguntou de chofre a Joana quem era o homem que estava na foto da mesa da sala.
- o meu ex-marido, respondeu ela
- o malandro que me roubou a mulher, retorquiu ele
O silêncio foi pesado. Mas durou apenas os segundos que levaram João a sair da sala...

Helena

terça-feira, 8 de novembro de 2011

O equívoco...


Tiago e Susana formavam um daqueles casais modelo que animam semanalmente as chamadas revistas do coração. Mas cada um deles podia, de modo singular, pisar as passarelas, dado que se distinguiam não só pela qualidade e bom gosto daquilo que envergavam, como pela beleza de quem sabe que o aspecto físico conta muito.
Ambos com carreiras promissoras, deambulavam pelas festas sociais com o direito que lhes assistia pelos altos cargos que ocupavam. Foi numa dessas cerimónias elegantes que o "caso" se passou.
Quando entraram na sala o champanhe já animara a conversa preparando, assim, um jantar que prometia ser tudo menos aborrecido.
Nos cumprimentos habituais - abraço aqui, beijo acolá, aperto de mão para os menos próximos - o casal ia esbanjando a sua habitual simpatia.
Até que Tiago se deu conta do insistente olhar que um dos convivas ousadamente lhes dirigia. Primeiro tolerou, depois enervou-se. Não era um marido ciumento, mas a situação estava a tornar-se incómoda.
Para prevenir males maiores, dirigiu-se discretamente para o perturbador e baixinho disse-lhe:
- meu caro amigo, o seu olhar está a incomodar a minha mulher.
Ao que o visado respondeu:
- pois não devia, porque é para si que a minha atenção se dirige... caso esteja interessado em sabe-lo!

Helena

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Tudo se transforma


Conheciam-se de crianças porque tinham crescido juntos. Gente humilde, modesta, lá para as bandas do Alentejo, habituados a do pouco fazer muito.
Ela queria ser grande. Ele não pensava nisso.
De manhã, chovesse ou fizesse sol, percorriam quatro quilómetros para ir aprender o que os havia de salvar. Achavam os outros. Que eles só achavam muito duro tanto ter de caminhar.
O tempo foi passando. A garota virou mulher, fez-se gente, que era a sua aspiração. O rapaz, esse, fez-se ao caminho da capital, como moço de recados de um conterrâneo que abrira uma mercearia.
A moça casou, porque esse era o seu destino. O miúdo aprendeu como o negócio se fazia e, depressa saiu das obrigações dos outros, para as suas próprias obrigações. Anos passados, era a sua vez de mandar fazer recados.
Da loja de bairro que tem tudo, passou a loja que só tem algumas coisas. Aquelas de que gosta quem tem mais dinheiro. Foram estas que se multiplicaram e fizeram dele um homem rico. E só.
A mulher feita, fez-se mãe, completando o ciclo que lhe estava destinado. De dois filhos. Que a vida não permitia mais. Mas, de repente, quando nada nem ninguém o esperasse, ficou viúva. Com filhos criados, ficou só.
Cada um completando o seu ciclo vital, acabaram por se encontrar no enterro de um amigo comum. Ele viu nela a infância esquecida. Ela viu nele o futuro que poderia ter sido o seu.
Despediram-se com o olhar, ambos amparados nas suas próprias solidões...

Helena

quarta-feira, 20 de abril de 2011

As duas mulheres


Elvira já o sentia há pelo menos meia hora. Para onde quer que se dirigisse ele não a perdia de vista. A certo momento, cansada daquela dança parou e virou-se para o seguidor. Antes de balbuciar alguma coisa ouviu logo:
- Não se lembra de mim?
- Não. Não me lembro do senhor. E porque havia de me lembrar?
- Porque, outrora, nos conhecemos bem.
- Outrora quando? De certo que está enganado.
- Das Azenhas do Mar.
- Das Azenhas do Mar?! Mas como é que o senhor se chama?
- José Fidalgo. Primo dos Condes de Tomar, seus parentes.
- Desculpe, mas deve estar a fazer confusão. De facto, a nossa família tem, há muito tempo, casa nas Azenhas do Mar e somos realmente amigos dos Costa Cabral, condes de Tomar. Mas não tenho qualquer ideia de si ou de qualquer outro membro, seu parente com esse apelido.
- Mas devia, porque a nossa relação foi muito próxima.
- Muito próxima, como?
- Tão próxima quanto podem ser dois noivos.
- Noivos?! Que disparate. O único noivo que tive na minha vida foi o meu falecido marido.
- Engana-se. Fui eu. E ainda trago comigo a última carta que me escreveu. Num instante levou a mão ao bolso e retirou a carteira. Nesta, encontrava-se um papel de carta muito velho dobrado em quatro. Desdobrou-o com cuidao e mostrou uma carta curta assinada por uma Elvira.
- Não sou eu, caro senhor. A autora dessa carta não fui eu.
Neste instante, um jovem aproximou-se deles e disse:
- Desculpe o meu Pai. Desde que adoeceu que não faz outra coisa que não seja procurar uma Elvira. A minha falecida mãe chamava-se Natália.
E nós nem conseguimos, sequer, saber quem é esta senhora que parece ser tão importante para ele.
- É ela, filho. É a Elvira, a mulher que me deixou para casar com o Jacinto.
Elvira ficou lívida, paralisada a vê-los afastarem-se. O seu falecido marido chamava-se Jacinto!

Helena

sexta-feira, 15 de abril de 2011

Para pensar…


A vida é o dever que nós
trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê já são seis horas!
Quando se vê já é sexta - feira!
Quando se vê já é Natal…
Quando se vê já terminou o ano…
Quando se vê já perdemos o amor da nossa vida
Quando se vê já passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade,
Eu nem sequer olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo
caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguiria o amor que está à minha frente
e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo
de que goste devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas a seu lado
por medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo
que, infelizmente, nunca mais voltará.

Estes versos de Mário Quintana acompanhavam Marta há anos. Nunca os achou velhos. Pelo contrário, quanto mais tempo passava, mais vivos lhe pareciam. Hoje é Matilde, a sua filha que os tem na mesa de cabeceira. E como sua mãe está longe de os considerar ultrapassados!

Helena

O passado de cada um


Teresa não vivia do passado. Mas acreditava que o futuro não se constrói sem as lições que dele tiramos. Ninguém pode, num passo de mágica, pretender eliminar uma parte da sua vida, por mais desagradável que ela possa ter sido.
E até julgava que era bom que assim fosse. Porque aquilo que já vivemos – bom ou mau – faz parte daquilo que somos. Pode estar muito arrumadinho num canto escondido da nossa memória. Pode, até, só raramente vir à lembrança. Mas está lá. E acabará por surgir sempre que vivenciarmos algo semelhante. Ou sempre que a sua revelação nos habilite a compreendermos melhor o mundo que nos rodeia.
Possivelmente era esta a razão pela qual a impressionavam tanto as pessoas que queriam “matar”, apagar, uma parte do que já haviam vivido, parecendo ignorar que esse património é uma das melhores ferramentas de que dispomos para cuidarmos do futuro.
Por isso, pensou, era tão difícil a sua harmonia conjugal. É que cada um dos elementos de um casal possui uma história de vida e uma família à qual, na maioria dos casos, o outro é alheio. Conciliar esses dois mundos nem sempre é tarefa fácil. Para cada um deles, mas também para as respectivas famílias que têm de conviver!
Teresa provinha de uma família da classe média alta, mas casara com o filho de um empregado da lavoura de seu pai. Todos haviam contrariado aquela união que vislumbravam plena de problemas. Dos quais, mais cedo ou mais tarde, ela iria dar-se conta.De facto, assim foi.
Tudo correu bem até ao nascimento do primeiro filho. Com ele começaram as divergências, porque o neto pulava do avô caseiro para o avô proprietário, obrigando ambos a um convívio diferente daquele que sempre haviam tido e que resultava de uma mera ligação laboral.
O mal-estar instalou-se. Com efeito, não era fácil explicar a uma criança de três anos, porque é que a vida de cada um dos avôs era tão diferente. Para o garoto aqueles entes queridos eram e seriam sempre iguais.
Teresa sentia, agora, na sua pele o que antes lhe haviam tentado fazer compreender. Não queria hostilizar marido nem os sogros, mas também não podia pôr-se contra o pai. Até porque não tinha razões objectivas para o fazer. Qualquer deles vivia como gostava e disso nenhum abdicava.
Na verdade o ditado popular era bem certo o adágio popular, quando afirmava “antes que cases, vê o que fazes”.
Como eles iriam resolver a questão nenhum sabia. Apenas tinham a consciência de que, mesmo no amor, os passados de cada um contam muito!

Helena

domingo, 3 de abril de 2011

O anel

A realidade, em muitas ocasiões, ultrapassa a própria ficção. Todos sabemos isso. Mas ficamos sempre surpreendidos quando se trata de nós. Era este o pensamento de Sofia quando chegou ao hotel. De facto, acabara de viver uma história que ilustrava bem o adágio.
A nossa heroína, antiga jornalista e hoje directora de uma empresa de comunicação, tinha decidido tomar uns dias de férias. A verdade não era exactamente esta, uma vez que a realidade é que ela fora convidada por um cliente a ir até Berlim, após ter ganho o projecto para o qual a sua empresa fora contactada.
Ambos divorciados, o convívio profissional havia-os aproximado. Sofia, que não pretendia relações passageiras, considerou que aquela viagem lhes permitiria conhecerem-se um pouco melhor e por isso resolveu aceitar o mimo. Mas não quis, na altura, pôr a família ao corrente da situação. Por isso, as férias surgiram como uma boa desculpa perante um ano de muito trabalho.
A viagem correu de modo excelente e, no último dia resolveram visitar alguns jardins mais emblemáticos da cidade. Num deles uma árvore centenária dominava o parque. Naturalmente o casal aproximou-se para a observar de perto, surpreendido pelas raizes enormes e salientes. Numa delas algo brilhava.. E um rapaz tentava, com um graveto, isolar o objecto brilhante. Baixaram-se para ver o que era. Nada mais, nada menos, do que uma aliança larga dourada que parecia enrolar-se num pequeno abeto que crescia à volta.
O adolescente pegou nela. Mas, ao vê-los, deve ter julgado que eles a teriam perdido e a haviam encontrado. Rápido, fez o gesto de a devolver e desapareceu a correr. Sofia e Rui não puderam deixar de rir pelo embaraço do garoto. Nenhuma data ou inscrição. Nada.
Hesitaram entre deixá-la no mesmo lugar ou guardarem-na. Decidiram-se por ficarem com ela. Voltaram a Portugal. Mandaram gravar a data e desde há dois anos que Sofia nunca mais a tirou do dedo.
Muitas histórias podem estar por detrás deste anel. Divórcio, arrufo, ou pura perda. Nenhuma será feliz. Excepto para a nova dona que tem por ela uma imensa ternura!

Helena

terça-feira, 1 de março de 2011

A Previsão

Ivone era uma pessoa pouco dada à astrologia ou ao que é comum chamar-se de ciências alternativas. Era, digamos, muito céptica em relação a tudo o que fossem previsões com base em datas de nascimento, cartas de tarot ou leituras de búzios.
Mas tinha uma grande amiga brasileira, a Ariclê, que vivia desse tipo de actividade, depois de ter abandonado uma carreira de sucesso na área da gestão. O que ela fazia exactamente, Ivone não sabia, porque nunca quisera participar de nenhuma das suas sessões. Ariclê sempre insistira, mas sem êxito. O que ela lhe dissera é que era capaz de entrar no “arquivo morto” da nossa memória e retirar de lá lembranças que nos seriam de grande utilidade em dificuldades presentes ou futuras.
Ivone reconhecia que algum dom especial devia ter a amiga, que era visitada por gente vinda dos quatro cantos do país. E gente de nível intelectual acima de qualquer dúvida. Muitas vezes conversavam sobre as verdadeiras razões que levavam tantas pessoas a procurarem os seus serviços, mas ficavam por aí.
Uma noite Ariclê telefonou a Ivone para a convidar a jantar com um grande seu amigo e colega, o Professor Veríssimo, pessoa muito respeitada no Brasil e que vinha a Portugal fazer uma série de conferências.
- Tem que vir, minha amiga, porque você vai ficar surpreendida com a qualidade deste homem. Mesmo sendo céptica, como você é.
- Ariclê, você sabe o que eu penso dessas coisas. Depois não se admire se eu disser algo que lhe não agrade.
- Esteja descansada. Eu já disse ao Veríssimo o que você pensa. Nós vamos falar de outros assuntos. Ele acabou com um casamento longo e precisa de se distrair.
- Bom, então fica combinado. Passam a buscar-me?
- Sim senhora. Vai ver que vai gostar.
O jantar foi, de facto muito agradável. Falou-se de viagens, livros e cinema. O Professor era um excelente conversador. Já mesmo perto da casa de Ivone, enquanto a levava à porta de entrada do prédio, disse-lhe, à queima-roupa:
- Ivone, você vai voltar a casar-se dentro de dois anos.
- Terei que me divorciar primeiro, meu caro amigo. Porque tenho um marido e espero mantê-lo por muito mais tempo do que isso…
- Só lhe digo isto. Um dia falaremos!
Já em casa, Ivone contou ao marido o que se passara. Ele apenas sorriu.

Ariclê retornou à sua terra e nunca mais falaram no assunto. Um dia recebeu um telefonema de Ivone a dizer-lhe que ficara viúva. O marido falecera num acidente de automóvel. E ela resolvera passar uns dias no Brasil.
- Venha sim, amiga. E sem data certa para voltar. Para poder descansar.
Quando chegou, Ariclê havia preparado um jantar para a apresentar aos amigos. Que, aliás, a receberam de braços abertos. Em particular Veríssimo que, a brincar, lhe relembrou a previsão que fizera. "Ainda faltam seis meses para terminarem os dois anos", disse ele a sorrir.
Mas a previsão cumpriu-se. Casaram um com o outro... quando terminou o semestre que faltava à profecia!

Helena

O Casting

O seu sonho era aparecer na televisão. E os pais apoiavam a pretensão da garota, que desde os dez anitos andava em toda a espécie de concursos. Nunca a precaveram, alguma vez, para os riscos que aquele devaneio representava.
Mas uma manhã, quando menos a família e a própria esperavam, a Gilda foi convocada para um ensaio. Tinha quinze anos, era espigada, bonita e airosa. Mas muito pouco instruída, porque entre os “castings”, as aulas e os exames, a prioridade pertencia sempre aos primeiros.
Nesse dia tratava-se de uma série de ensaios fotográficos para saber se a pequena tinha ou não a fotogenia necessária para modelo fotográfico. Pediam-lhe que fosse a uma certa morada, dentro de uma semana. Mas avisavam que fosse sozinha.
Nem Gilda nem D. Adelaide cuidaram de confirmar o que quer que fosse, acreditando piamente nas palavras do senhor Gonzalez, o produtor – dizia-se ele -, que as contactara e tanto parecia saber não só de televisão como dos interesses de Gilda pelo meio artístico.
Chegado o dia, a combinação feita era a de que a jovem falaria à mãe, mal a sessão acabasse, para que esta a fosse buscar e pudesse, até, ter dois dedos de conversa com o fotógrafo.
Gilda lá foi à procura do estúdio que ficava numa pequena ruela de Campo de Ourique, num prédio velho, esconso e com um acentuado cheiro a urina. Tocou à porta, apresentou-se e esperou que o espanhol aparecesse. Julgava-o assim, por causa da salganhada de língua em que se exprimira ao telefone.
Entretanto o ambiente era algo estranho. Havia sofás variados, alguma lingerie, e muitas luzes vermelhas. Gilda começou a ficar inquieta.
Nessa altura, vindo detrás de umas cortinas, apareceu o dito Gonzalez que lhe disse para ela se despir e vestir as peças de roupa interior que ela acabara de ver.
- Despir?!
- Sim menina despir, pois. Como é que queres que eu veja se serves para o papel?
- Qual papel?
- De modelo. Ou tens algum problema em mostrar o corpo? Não vais para a praia de biquíni?
- Mas isso é na praia, senhor Gonzalez.
- E qual é a diferença?!
Vá despacha-te que eu tenho mais que fazer. Vais aos castings para concursos de beleza e agora estás com falsas vergonhas? Era só o que me faltava, que te armasses em virgem…
- Senhor Gonzalez, eu não sou capaz.
- Ai não? Então pira-te daqui imediatamente, desaparece. E aprende uma coisa: quem vai a castings, tem que se despir.
Gilda soluçava quando telefonou à mãe e lhe contou o sucedido. Do outro lado do fio, a D. Adelaide dizia-lhe que se acalmasse, porque também não era preciso fazer tanto alvoroço quando, afinal, o homem nem sequer lhe tinha pedido que ficasse nua.
Que diacho, Gilda, na praia, de facto, tu andas de biquíni. E bem pequeno, por sinal!

Helena

O Silêncio é de ouro...

Sofia e Marta eram amigas desde a escola primária. Dificilmente se podiam imaginar duas pessoas tão diferentes e que tivessem gostos tão semelhantes em matéria cultural. Apreciavam os mesmos compositores, pintores, autores e cineastas e, nem sempre, pelos mesmos motivos. Mas era justamente isso que dava à relação delas uma enorme vivacidade.
Ambas eram bem casadas e, para facilitar o seu relacionamento também os respectivos maridos eram igualmente amigos. Constituíam, simultaneamente, motivo de inveja e de admiração por parte dos restantes companheiros.
Certa tarde, Sofia que se sentara numa esplanada a apanhar um pouco se sol, junto ao rio viu, Alexandre, o marido da amiga, a passear de mãos dadas com uma mulher, ao longo do passeio que bordeava as cadeiras. O gesto imediato foi levantar-se e ir ter com os amigos para se meter com eles. Mas, mal deu uns passos, percebeu que a mulher não era Marta.
Recuou de imediato e o que lhe apeteceu fazer foi ir-se dali embora. Mas o casal, de costas para ela, acabou por se sentar na esplanada ao lado. Sofia pôs os óculos, mudou de posição e ficou a observá-los. Não era difícil perceber que tipo de relação estava ali. A jovem, porque era de alguém que não teria mais de vinte anos, que se tratava, manifestava de forma bem exuberante o que sentia pelo seu acompanhante.
Finalmente Sofia resolveu ir-se embora porque começava a estar incomodada com o que via. Apenas hesitou se deveria ou não mostrar-se, de modo a dar a conhecer a Alexandre, que vira tudo. Tomou a decisão de lhe falar na esperança de que ele se viesse a sentir constrangido.
Pura ficção da sua parte. Ao vê-la, Alexandre não só a cumprimentou como a convidou a sentar-se à sua mesa e lhe apresentou Isabel. E, surpresa das surpresas, nem sequer se coibiu, nos escassos instantes que ali esteve, de manter as manifestações de afecto que ela já vira antes. Incomodada, mas sem o mostrar, Sofia despediu-se.
Já no carro pensava no que iria fazer. De certo, contar ao marido. Mas, depois, o que fazer? Esquecer? Não se intrometer? Não contar? Estava muito angustiada e até chocada. Era algo de impensável naquele casal!
Quando o marido chegou contou-lhe o sucedido. Ele não pareceu ficar muito surpreendido. E quando Sofia lhe perguntou o que haviam de fazer, respondeu-lhe “nada”.
- Como nada?!
- Exactamente o que ouviste, nada.
- Mas eu sou amiga da Marta…
- Por isso mesmo. O assunto é deles e respeita a sua privacidade. Se o contares, não resolves nada e vais perder dois amigos. É isso que queres?!
Sofia ficou a olhar para o marido, sem resposta. Mas acabou por seguir o seu conselho. É que se lembrou do velho ditado popular que diz que “entre marido e mulher, não metas, nunca, a colher”!

Helena

A troca


A jovem fora para Inglaterra tentar a vida que nunca fora grande coisa lá na aldeia toscana de onde saíra. Tinha dezoito anos e esperava fazer da bela figura que possuía, o seu modo de vida. Mas as coisas não correram de feição. E a futura ex modelo teve que deitar mão ao trabalho de empregada de mesa, para o qual, afinal, o corpinho também era importante, sobretudo naqueles pequenos restaurantes que rodeiam o centro financeiro de Wall Street pois foi num deles que a bela Laura acabaria por ficar.
Poucos meses antes, Pedro fora colocado num banco português em Londres, como responsável da sucursal. Casado com dois filhos, a mulher, Vera, não o quis acompanhar porque se dava muito mal com o clima da cidade. O casal via-se, assim, em fins-de-semana alternados, em que ou um vinha à capital nacional ou o outro ia à capital londrina.
Foi no pequeno restaurante onde o nosso banqueiro sempre almoçava, que se conheceram. Viriam a tornar-se mais íntimos depois. A ponto de viverem juntos toda a semana e de apenas se darem folga nos dias destinados à já citada conjugalidade familiar. Desta forma decorreram quatro anos de bigamia sem sobressaltos para ele e de promoção social para ela.
Uma manhã Pedro recebeu de Lisboa ordem de marcha para Madrid. Se, por um lado lhe desagradava ter de abandonar o centro nevrálgico dos negócios, por outro, agradava-lhe a movida madrilena. Quando Laura soube do sucedido, decidiu de imediato que o acompanharia. Nem um nem outro, todavia, contaram com a decisão de Vera em acompanhar o marido nessa nova etapa, numa praça mais perto de Portugal e com grandes vantagens climáticas sobre Londres.
Foi, de facto, uma surpresa da qual Pedro não sabia como sair, visto que Laura acabara por vir com ele para Lisboa e não o queria largar. A vida do banqueiro estava a tornar-se insuportável. A ponto de não ter encontrado outra saída, que não fosse contar tudo a Vera, na esperança de que ela fizesse o que ele, no fundo, não tinha a coragem de fazer. Ou seja livrar-se de Laura, cuja função, aliás, atingira o limite da validade. Foi o que, de facto, Vera fez, com dureza e habilidade. Dureza, para que Laura não ficasse com dúvidas sobre o significado da palavra “fim”. E habilidade, porque lhe levou na mão uma boa oportunidade de trabalho na venda de equipamento informático, numa empresa de um seu amigo, em Lisboa.
Raivosa, mas limitada e sem grandes conhecimentos, acabou por aceitar a oferta. O contrário seria voltar para a aldeia donde partira e à qual não queria tornar. Paulatinamente, jurou que havia de encontrar alguém que vingasse esta mal sucedida história. E, na verdade, encontrou.
O “anjinho” foi um dos seus clientes, também ele antigo bancário e casado. A princípio era um aconchego numa vida já pouco interessante. Para ele, que gostava de mulheres e a quem uma não bastava. Para ela, porque lhe arredondava os meses e lhe permitia frequentar outros meios. E, aqui, serviu-se do que aprendera antes. Aos poucos foi-se insinuando e em seguida engravidou. Estava criado o cenário para poder sair vitoriosa. E saiu, mesmo.
Laura e Pedro estão casados há poucos anos. Ela leva uma bela vida. E ele, por seu lado, fez da ex-mulher a sua “amante”, e mima-a como antes nunca fizera. E esta, na nova situação, está longe de ser infeliz. Bem ao contrário, o melhor bocado é hoje dela!
Helena

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Uma vida feita a pulso

Nascera uma aldeia do Portugal profundo, como Diana costumava dizer. Há pessoas que nascem, crescem e morrem nelas. Sem que, alguma vez, vejam um mundo diferente. Acontecera isso com os seus bisavôs, depois com os avôs e teria acontecido com os seus pais se eles não tivessem escolhido melhorar de vida. E, no seu caso, melhorar de vida foi terem-se feito contrabandistas.
Dessa opção de risco e de ilegalidade beneficiaram os dois filhos que, através dela, correram o país - a profissão a isso obrigava - e, por mais estranho que pareça, com tanta mudança, conseguiram estudar.
Lourenço, o irmão, teve muita dificuldade em se adaptar à carreira dos pais. Era uma criança nervosa e que via polícias por todo o lado. Tornou-se um adulto sério, esforçado, mas sem ponta de criatividade.
Diana, ao contrário, só não seguiu as pegadas dos ascendentes, porque resolveu moldá-las em figurino diferente. Queria ser comerciante, ter loja com porta aberta e ganhar dinheiro. Começou por trabalhar para os outros. Depois de aprender os segredos do ofício, foi com uma amiga vender aos antigos clientes o que antes lhes vendiam os patrões. E, claro, mais em conta. Trabalhou muito e ganhou bastante. E um dia resolveu estabelecer-se. Alugou um vão de escada e passou a vender o contrabando dos pais. Com tal jeito que lhes branqueou a origem. Para isso, bastou-lhe a perícia de um amigo que trabalhava nas Alfandegas. Conseguida a legalidade da ilegalidade, faltava fazer o mesmo à origem e à educação. A primeira, transformou-a em titular dum palacete no tal Portugal profundo. Mais precisamente de Belfonte, que ninguém sabia onde ficava precisamente. Quanto à educação, a vida ensinou-a e aos poucos o vestuário, as peles e as jóias transformaram-na numa senhora. O ciclo estava acabado. Só lhe faltava poder social. Esse, deu-lhe o dinheiro que aplicou nas gentes que lho garantiriam. E, um dia ele veio ter consigo. Com medalha de bons serviços à nação e o título de comendadora. Só não viveu tempo suficiente para se tornar ministra. O que foi bom, porque isso lhe teria reduzido o prestígio!

Helena