terça-feira, 26 de outubro de 2010

A vida tripla

Eu sei muito bem o que é ter várias vidas, pensou Jorge enquanto via os carros passar naquele jardim onde costumava ficar a ler. Era no Príncipe Real. Num canto os reformados jogavam à sueca à volta de uma mesa desmontável. Perto, num banco, duas velhotas apreciavam a juventude apressada e faziam comentários. Noutro banco, uma jovem lia uma revista, com ar de quem não tinha emprego e não sabia o que fazer ao tempo. Mais adiante um grupo discutia à volta do balcão do quiosque os resultados do futebol e percebia-se bem que não eram todos do mesmo clube.
Finalmente eu, um híbrido social, como tantos que pululam entre nós, discorria sobre a sua plural existência. No Alentejo onde passava de sexta a Domingo era o Senhor Engenheiro. Vivia bem porque a Cristina, a mulher legítima, era herdeira de um abastado património. Em Lisboa era o Senhor Santos, com uma pequena casa na Almirante Reis que lhe ficara de uma avó com quem sempre vivera.
E, de vez em quando, no Porto, era o Jorginho, quando se entregava, uma vez no mês, nos braços da Maria Eugénia, que o considerava caixeiro viajante e o dava publicamente como marido.
Pois bem, esta mordomia de personagens ia acabar. Quer Cristina, quer Eugénia queriam vir para Lisboa viver com ele, que não sabia como descalçar esta bota. Tanto mais que, na pouca vizinhança conhecida, todos o tinham como viúvo.
Era nisto que Jorge pensava de há uns dias para cá. Sem conseguir encontrar uma solução, levantou-se e caminhou um pouco. Tinha que contar a verdade a uma delas. Não havia qualquer outra solução. Mas não tinha coragem para eleger a qual delas se iria confessar.
De repente, vindo não se sabe donde, um silvo de travagem, um empurrão brutal, gritos e um carro a colhê-lo na passadeira.
Ainda se lembra da gente à sua volta, da sirene da ambulância e de pensar... que a Cristina e a Eugénia se estavam a rir imenso dele...

Helena

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

O especialista em divórcios

Esta história é verídica e estão vivos todos os seus intervenientes. É caso para dizer que, por vezes, a realidade supera a ficção.
Chamo-me Frederico e tenho cinquenta e cinco anos. Costumava dizer, bem vividos. Hoje, já não digo. Porque, julgo, terei, afinal, cometido bastantes falhas. Na vida profissional até sou bem sucedido. Na vida pessoal é que as dúvidas começam.
Os meus pais divorciaram-se tinha eu, talvez, nove anos. O embate, sei-o agora, foi enorme. Se os meus pais me usaram como arma de arremeço entre os dois, também não me isento dos jogos que fiz, aproveitando-me da situação. Foi ela por ela. Mas sofri mais do que teria gostado que tivesse acontecido. E, jurando que tal nunca me aconteceria, acabei por fazer pior. Sou especialista em divórcios.
Vou contar como tal aconteceu. Casei muito cedo, contra vontade dos meus pais. Mas como era maior, aos 20 anos passava pelo Registo Civil, para dar forma e nome ao amor. Que durou quatro anos, mas de modo intermitente.
O divórcio acabaria por ser pago pela minha mãe que sempre entendeu que as situações reais deviam corresponder às situações legais. Tinha razão. Por isso, nunca mais casei. Fiquei-me pelas uniões de facto com as várias mulheres com quem vivi.
Seguiram-se várias relações que não refiro porque não fizeram história. Mas por volta dos vinte e oito anos conheci a Isabel. E o laço que nos uniu foi forte. Durou cerca de nove anos.
Mas ela, aos trinta e oito, queria ser mãe. Eu, pelo contrário, não estava interessado em ser pai. Até porque, mantinha já há cerca de ano e meio, uma relação com a Vitória, uma garota moderna que tinha menos uma década que eu.
Decidi, então, acabar com a Isabel. Mas demo-nos uma última chance nuns dias de férias no estrangeiro. A viagem correu mal. Não havia, afinal, nada a salvar.
Mas quando iamos no avião para Londres, algo se incendiou, de novo, entre nós. Não me perguntem como foi. Foi mesmo assim. O que fez com que parássemos na capital inglesa por dois dias. Julgo que terá sido nessa altura que o meu primeiro filho, o Diogo, foi feito.
De volta a Lisboa o retomar da vida em comum não correu bem. Vitória fez tudo para ficar comigo. E eu cedi. Saí de casa, tinha a gravidez de Isabel uns seis meses. Não foi bonito. E, talvez porque isso me penalizasse, disse que quando a criança nascesse eu volaria para casa por uns meses para ajudar nos primeiros tempos do meu rebento. E aconteceu assim.
Só que ver cá fora um filho apesar dele não ter sido planeado, acabou por me levar a perguntar se Vitória valia mesmo que eu perdesse o crescimento de Diogo. Ou seja, comecei com dúvidas. E achei que queria estar com o filho e a mãe.
Assim, decidi acabar com a Vitória. Saímos para jantar e, para evitar subir a sua casa, ficámos um bom bocado no carro à sua porta. Eu tentava, mal, explicar-lhe as minhas razões.
Foi o meu azar. Enquanto isso acontecia, a Isabel passou no local e reconheceu o meu carro. Quando cheguei a casa tinha as malas feitas. Duma penada ficara sem as duas mulheres, sem o filho e sem casa...
Passaram alguns meses e eu que sou comodista voltei para a Vitória. Que, uns tempos depois, engravidou do meu segundo filho, o Tiago. Vivemos juntos mais seis anos da minha vida. Até que voltei a separar-me. E a encontrar, meses depois, a Maria, uma amiga que conhecera anos atrás. Desta vez pegou e passaram mais cinco anos.
Acabo de me separar. Mas sou um homem de sorte porque todas estas mulheres gostam muito de mim. E eu delas, é evidente!

Helena

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Uma vingança curiosa

Casaram-se no meio de grande surpresa, talvez porque ele fosse bastante mais novo do que ela. Mas estavam apaixonados e isso era o que importava. Ela tinha quarenta. Ele quase trinta. Foram felizes. Durante quase dez anos. Pelo menos era o que ela sentia. E o que ainda hoje sente.
Mas esse sexto sentido tão feminino, um dia deu-lhe sinal. Alertou-a. Não que fossem coisas significativas. Apenas pequenas mentiras. Mas que se repetiam, sem a mínima necessidade. Foi essa gratuita repetição que começou a perturbar Joana. Ela, que embora soubesse que Manuel não era nenhum santo, estava longe de acreditar que ela a pudesse, alguma vez, pôr em causa. Mas foi justamente isso que aconteceu. E um dia Manuel foi-se embora. Cansado dela ou apaixonado por Cecília. Nunca saberia.
O mundo seguro de Joana desabou. O divórcio foi terrível. E ela ficou com o sabor amargo de uma vida que se desfaz aos cinquenta anos.
Fez análise. E foi através dela que percebeu que precisava de se "vingar". Estranho, num processo analítico. Mas verdadeiro. Joana precisava de voltar a tê-lo nos seus braços. Mesmo que pagasse muito caro por isso. Estava mesmo disposta a pôr-lhe no bolso um envelope com vinte euros e um cartão a dizer "preço justo". Assim, as contas ficariam saldadas. As lágrimas, as dores, as ânsias e as angústias seriam liquidadas. Por uns humilhantes vinte euros...
Mas a vida prega partidas. Cinco anos passaram e o encontro deu-se no Porto. Tão inesperado quanto explosivo. Porque era de amor e de vingança que se tratava.
O retorno foi silencioso. E à despedida Joana não fez o que tinha pensado. Resolveu esperar. Manuel voltou. Várias vezes. Agora, tornava à casa que, antes, fora dele também.
Foram sempre bons os encontros. Talvez porque Joana sabia que, um dia, a mulher que lho roubara haveria de saber que ele tornara. E soube, de facto...
Além do mais, cada vez que estavam juntos, além do prazer que tinham, era um prazer que a "outra" perdia!
Quando Joana sentiu que o tempo de expiação terminara, acabou. Tão inesperadamente como havia começado. Mas, finalmente, curada e de contas acertadas. Haverá algo mais prazenteiro do que servir aos outros o prato que nos serviram?!
Helena

quarta-feira, 6 de outubro de 2010

Ser diferente

Carlos foi tomando conhecimento de que era diferente. Só que não percebia onde estava essa diferença. Não se interessava por guerras, bandidos ou ladrões, que eram os temas predilectos dos colegas da escola.
Em casa o pai chamava-lhe nomes e dizia que tinha jeito de mulher. Fazia-o para o espicaçar, mas também para o ofender. Contudo, ele não se ofendia. A mãe, ao contrário, tentava percebê-lo. Punha-lhe questões. Sabia, intuía que o facto de ele "ser diferente" seria, sempre, algo de muito doloroso.
Um dia, por volta dos seus treze anos, Carlos sentiu que o que o ligava a Pedro era bem diverso daquilo que o unia a outros amigos. E ficou alarmado. Primeiro, porque era um sentimento novo, desconhecido, com que lhe era difícil lidar. Depois, porque não fazia a mínima ideia se era, ou não, retribuído. E, além disso, tinha receio de contar o que sentia por medo de não ser entendido. Depois, ainda, porque não sabia lidar com a sexualidade decorrente desses sentimentos.
Foram meses e meses de sofrimento. De dúvidas. De forte sentimento de culpa. De auto reprovação. De tentativas, até, de encontrar raparigas por quem se interessasse. Tentativas goradas, como se pode calcular. E mesmo traumatizantes.
Encorajado pelo irmão mais velho e pela mãe, os únicos que o compreendiam, decidiu ganhar coragem e confessar ao amigo o que sentia por ele. Não foi correspondido. Mas foi compreendido.
Pedro era heterossexual. Mas também era um jovem do seu tempo. Não ficou surprendido nem incomodado. Por isso, foi com naturalidade, que lhe confessou que apenas gostava de mulheres.
A experiência resultou triste. Mas não traumatizante. Um dia havia de chegar alguem que o fizesse feliz. Hoje Carlos tem 35 anos. Vive há cinco com o mesmo homem. Não pretende casar, nem isso lhe interessa. Filhos? Um dia, talvez. Mas, curiosamente, nunca esqueceu Pedro!
Helena

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

Amores

Há amores que perduram. Outros que acabam. Outros, ainda, que se transformam.
Há amores sexuais. Há amores filiais. Há amores maternais. Há amores fraternais. Enfim, há os amores mais diversos.
Era isto que Isabel pensava, naquela sala de espera do consultório. Era por causa desses afectos complicados que ela ali estava, pontualmente, às segundas e às quintas de todas as semanas dos últimos quatro anos.
O ritual era empre o mesmo. O analista raramente lhe fazia perguntas. Só quando receava não ter percebido o que ela dissera. E ela nem sempre se sentia com capacidade de falar. Mas, fosse qual fosse o seu estado de espírito, fosse qual fosse a conversa ou o silêncio, os cinquenta minutos que lhe eram dedicados marcavam a sua hora de saída.
Nessa tarde, mal se sentou, começou a falar. Queria perceber que tipo de sentimento a ligava a um homem de quem se separara por vontade própria, de quem já não gostava, de quem não tinha filhos, mas de quem se não conseguia, afinal, libertar.
É insano, dizia. Como posso pensar, lembrar-me, ter presente no meu espírito alguém que nada tem a ver comigo senão um triste passado. Porque é que isto me acontece? Que tipo de laços são estes e a que género de patologia é que eles estão ligados?
Será que isto me passará quando eu encontrar alguem que mate estas lembranças? Mas como, se as lembranças são todas tão más? Será que o desprezo que sinto por este homem com quem partilhei tantos anos, não chega para o apagar dentro de mim?
Será que, no fundo, tudo o que sinto, são ainda manifestações de um relacionamento que eu renego? Mas se é assim, como é que eu vou libertar-me dele e de mim para me abrir a algo que seja verdadeiramente regenerador? Ou não tenho, mesmo, cura?
O médico sorriu. Parecia satisfeito quando lhe disse "até quinta feira, à mesma hora"!

Helena