quarta-feira, 29 de setembro de 2010

Coup de foudre!

Nunca se sabe a razão dum coup de foudre, aquele estranho e paralizador sentimento que faz com que quase deixemos de ser nós, para passarmos a ser o outro. Uma espécie de fusão de materiais desconhecidos que se misturam por razões que desafiam não só a lógica, como a própria ciência.
Foi o que aconteceu. Ali estava Cristina a casar-se, numa cerimónia civil, com o homem da sua vida, quando os seus olhos se cruzaram com os do representante da autoridade.
Também Nicolau, o oficiante encarregado de legitimar a união, estava quase paralizado, preso daquele olhar, sem que lhe saíssem da boca as palavras adequadas à ocasião e circunstância. Foram momentos de suspense até que, com uma voz que mal se ouvia, ele os declarou marido e mulher. Com a certeza, contudo, de que aquela mulher só seria dele.
Tão convencido ficou que os meses, os anos, que se seguiram, mais não foram que motivos para se encontrar com Cristina. Que, claro, não deixou de corresponder...
Dois filhos haviam, contudo, de nascer do matrimónio, antes que este se desfizesse. Mas o amor louco, o tal golpe fatal que os atingira iria, finalmente, tomar forma.
Cristina separou-se e casou com aquele que antes validara a sua união. Durou dezasseis anos o novo casamento. Mas foi por outro coup de foudre que ele se haveria de dissolver...
Há pessoas que amam assim!
Helena

quinta-feira, 23 de setembro de 2010

Explicação

Escrever é assim. Pelo menos comigo. Há alturas em que começo e vou por aí. De rajada saem textos. Depois preciso parar.
Agora estou nessa fase. De paragem. Qualquer dia recomeço. Até pode ser já amanhã. Ou na semana que vem.

Helena

quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Um olhar

"Era ali.
Talvez porque existam muitos livros ou porque a noção de História se insinue permanentemente, entrelaçada com o discreto som de um piano.
Ou ainda pelo perfume da madeira encerada suavemente.
Era ali, depois da ascensão carmim, segurando um cálice ou remexendo as folhas, que os nossos olhos se encontrariam".

Há textos que nos lembram fases da vida ou episódios semelhantes pelos quais tenhamos passado. Li estes parágrafos e, como se entrasse numa máquina do tempo, lembrei-me. Primeiro de mim. Adolescente insegura, um pouco solitária, mas em compensação, ávida de perceber o mundo que me rodeava. Depois dele, o meu contrário. Já não adolescente, mas jovem seguro de si e do impacto que nos outros causava, lindo como era. E inteligente, numa mistura injusta para todos os que a não tinham tais predicados ou que apenas de um deles gozavam.
Durante meses vi-o nos claustros da Faculdade e julgo que terá sido então que me terei apaixonado. Digo julgo porque, hoje, já duvido muito de paixões sem diálogo. Mas ao tempo, como eu, muitas colegas minhas o terão cobiçado.
Um dia, numa queda, ele amparou-me. Foi quando os nossos olhos se cruzaram. E as nossas vidas também. Sem que nunca fisicamente nos tenhamos entregado, esta "estória" havia de me acompanhar até hoje. Morreu há muitos anos. Mas o retrato de um nosso abraço em terras distantes, continua bem presente numa mesa da minha sala.

Helena

quarta-feira, 15 de setembro de 2010

Aquela noite

"Logo que esteja tudo em ordem e tenha falado com os miudos, telefono-te. Penso que poderás voltar pelas 11horas da noite", disse-lhe Jaime, antes de desligar.
Natália ficou a olhar o aparelho como se esperasse alguma coisa mais, uma frase, um suspiro, um adeus, enfim, algo que não fosse aquela conversa natural, que, de tão natural, a exasperava...
Havia, pois, que passar o dia e parte da noite com alguem. De preferência uma amiga. Foi Maria a escolhida porque, de facto, ela era a pessoa que mais tinha acompanhado todo este doloroso processo. Quando a meia noite se aproximava, o telefonema chegou. Natália podia voltar para casa. E voltou.
Meteu a chave à porta. Estava tudo escuro. Nem um ponto de luz aceso. Foi ao quarto dos garotos que dormiam tranquilamente. Atirou as chaves e a carteira para a cadeira da entrada e entrou na sala.
O silêncio era total. Ao longe, pela janela, viam-se luzes. Atirou-se para cima do sofá e fechou os olhos. Nem uma lágrima deitou. Depois olhou em redor e percebeu que estava realmente só. Só, mas com dois filhos a entrar na adolescência, para educar.
O que é que eu vou fazer da minha vida? perguntava-se a si própria. Como é que eu vou aguentar?
Nunca um silêncio foi tão pesado, uma dor tão intensa, uma dúvida tão persistente, um desencanto tão magoado. Ela sabia que a vida continuava. Só não sabia como continuaria a dela, sem Jaime... Ficou, assim, parada, imóvel. Até a luz solar lhe bater nos olhos e a acordar de um sono que, na verdade, não chegara a existir.

Helena

terça-feira, 14 de setembro de 2010

A televisão...

Há história que contadas dão uma imensa vontade de rir. Mas isso não impede que possam ter custado muito caro a quem por elas tenha passado.
O Manuel era um sujeito calmo, apreciado tanto por homens como por mulheres. Os primeiros valorizavam o perfil discreto. As segundas, para além disso, sentiam que estava ali à mão de semear um ouvido sempre atento e uma pessoa da maior confiança. Contavam-lhe tudo. Desde as desavenças familiares, às rupturas maritais e algumas vezes, ao abrirem o seu coração, abriam também a porta do dito orgão vital. Para que pudesse ser tomado ou, pelo menos, partilhado.
A má da fita era sempre a Ondina, que se lamentava de que ele só tinha disponibilidade para os outros e se esquecia de quem tinha em casa. Claro que era verdade. Mas só era para ela. Os outros, esses, só conheciam o lado mavioso...
Daí que a desgraçada não tivesse, nunca, a atenção nem de homens nem de mulheres. Nem ouvidos para desabafar. Nem conselhos para receber. A excepção era só a sua mãe. Não pelo facto de sê-lo, mas porque conhecia a pinta do genro. Ela própria fora casada com uma pessoa do mesmo tipo.
Numa altura em que o sogro fora internado, o Manuel pediu-lhe para levar a televisão para o quarto do hospital, para o pai ficar mais acompanhado. Solícita, a Ondina disse que sim, embora estranhasse não a ter visto quando foi visitá-lo.
Inquirido, o marido disse-lhe que fora roubado e lha tinham tirado do carro. Não lhe dissera porque não quisera preocupá-la.
Meses mais tarde, na ausência de uma empregada, a sogra mandou-lhe a irmã da que trabalhava lá em casa, para lhe dar uma ajuda. Num fim de tarde, em conversa, antes de sair, a Clementina, disse-lhe: "minha senhora, desculpe, ando há tanto tempo para lhe agradecer e ainda não o fiz. Muito obrigada pela televisão que deu à Rosário. Não calcula o prazer que nos tem dado ver tudo em ecrã grande. Bem haja pelo presente"!
Helena

A marca...

A Elisa ainda hoje tem dificuldade em olhar para a marca. Por vezes chega a perguntar a si própria como pode alguem levar tanto tempo a esquecer alguma coisa. É que já lá iam vinte e tal anos e nada de olvidar aquela história.
Lembra-se bem. Já estava no segundo casamento. O marido, um apreciador do belo sexo, não lhe dava grande descanso. Mais jovem do que ela, não sendo uma estampa, sabia como encantar as damas à sua volta. Derramava ternura e afecto - durante anos tomavam as refeições quase sempre de mão dada - e a conversa ia sempre no sentido que mais lhe convinha. Elisa, aliás, sabia-o por experiência própria, uma vez que quando o conhecera o achara insignificante e seis meses depois estava casada com ele. Isso mesmo. Casada, não junta, como então se dizia!
E, de facto, foram as falinhas mansas que a levaram ao altar. Não popriamente ao altar, porque só casaram pelo civil, mas mesmo assim, ela que era mulher experiente, tinha ido na conversa.
Certa noite de Inverno, estavam ambos deitados a ler, quando Elisa, que folheava uma revista, lhe disse "esta nova marca nacional tem roupas bem bonitas. Pena é que seja tudo para exportação". João levantou os olhos do jornal, viu as fotos e, quase entre dentes, retorquiu "não é nacional. É francesa". Seguiu-se uma pequena conversa em que ela tentou convencer o marido de que este estava enganado. Mas João não saíu da sua, o que deixou Elisa incomodada.
Dormiu mal e de manhã voltou à carga, mas o consorte calou-a dizendo-lhe, agastado, "sei do que estou a falar. Não insistas".
Aí a campaínha do sexto sentido alertou-a. Sabia do que falava, logo ele que nem às compras ia com ela? Donde lhe vinha tão súbito conhecimento de moda feminina? Ou era um acaso e ela não acreditava neles, ou havia algo que ela não sabia...
Os meses que se seguiram acabaram por esclarecê-la. João tornara-se subitamente num expert de roupas para senhora. Interiores e exteriores. Em particular daquela marca.
Um dia veio a verdade. O marido delicado transformou-se num homem carrancudo a quem nada satisfazia.
Elisa indagou. Como só as mulheres sabem fazer, quando sentem o seu lugar em risco. E João não era muito cuidadoso. Daí que não tivesse sido difícil descobrir ... a amante francesa que é hoje sua mulher. E que deve acautelar-se porque, ao que ultimamente ouvira dizer, já andava uma espanhola na calha!

Helena

segunda-feira, 13 de setembro de 2010

A força de vontade!

Era um miudo franzino. Vivia lá para as bandas do Portugal profundo onde, para ir à escola, tinha de palmilhar descalço uns bons quilómetros. Filho de gente muito humilde mas que, para sorte sua, sempre entenderam os estudos como o melhor que a vida lhe podia dar.
Estavamos nos anos da guerra e com senhas de racionamento para tudo o que barriga pede para se alimentar. Mas, mesmo que elas não existissem, na casa dos seus Pais a pobreza foi sempre o prato principal.
José tinha oito anos e levantava-se pelas cinco da manhã. Um bocado de pão seco e uma caneca de leite eram o sustento para a caminhada. Fizesse sol ou chuva, lá ia o garoto por montes e vales aprender o que a D. Odete tinha para lhes ensinar.
Os anos foram correndo e a primária acabou mesmo a tempo da madrinha, bem velha, lhe dar a mão, permitindo-lhe assim fazer-se ao liceu. Foi quando calçou o primeiro par de sapatos.
O adolescente sentia que os estudos lhe acalmavam a ansia de saber e faziam dele uma pessoa feliz, apesar das dificuldades.
Acabado o liceu, José já sonhava com a Universidade. Mas quem lhe dera guarida e apoio para o secundário, não lhe podia valer para o ensino superior. Ele sabia disso.
A mãe tomou uma decisão dura. Abalariam para a cidade e ela iria trabalhar já que acreditava que o marido algo havia de arranjar. Assim foi.
E o Zé, acanhado mas com os olhos a brilhar, ganhou a bolsa que lhe havia de aliviar a compra dos livros. Foi um bom aluno. Seria economista.
Tropecei nele no meu primeiro ano de trabalho. E, um dia, soube esta história a seu respeito. Haveria mais tarde de o reencontrar na chefia de um posto. Foi uma figura importante na vida deste país.
A idade afinou-lhe, se possível, ainda mais, a capacidade de entender. Não prega sermões nem tem medo das palavras e ouvi-lo é ter a certeza de que se fica sempre a saber mais sobre alguma coisa.

Helena

As cores

No princípio era tudo branco. Tudo limpo. Mas o homem nunca está satisfeito. E experimentou com o seu sangue manchar o branco. Foi surpreendente. De repente o vermelho começou a alastrar. Devagar, sentindo que se estava a transformar. E o rosa foi surgindo, esplendoroso.
Mas a imaginação não tem limites. Uns pingos de preto prepararam o carmim e fizeram-no crescer. Este, intenso, sensual decidiu escolher com quem se misturar. E descobriu o amarelo de quem se aproximou. Todavia a fusão não foi fácil, porque o amarelo é dificilmente seduzível e fez-se rogado.
Aí o carmim, astuto, disfarçou-se de verde e rondou, de novo, o seu amor. Este, tolo, entregou-se nos seus braços. E de repente, sem que se esperasse, o verde surgiu cheio de força.
O amarelo percebeu que fora enganado. Mas dos enganos, por vezes, surgem ideias novas. Foi o que aconteceu. O amarelo descobriu que por seu intermédio, a panóplia das cores era incomensurável.E dele nasceram não só outros coloridos, como uma imensa profusão de nuances.
Como num caleidoscópio, as cores começaram a sentir o prazer da liberdade. E da mistura. De um arco-iris inicial de sete cores, fez-se a multiplicação cromática. Até o branco, alvar e virgem, se deu ao luxo de não querer continuar a sê-lo. E como o amarelo, também ele se sentiu rei e senhor.
Foi assim que o mundo deixou de ser neutro. Prazenteiramente. O modelo pegou e chegou às pessoas. Que, igualmente, ganharam cor e se misturaram...

Helena

Os números...

No princípio quando Deus criou o mundo, as pessoas que o habitavam sentiam que lhes faltava qualquer coisa. Metade dessa gente pensava que lhes fazia falta terem letras para se poderem exprimir. A outra metade entendia que antes das letras, havia que criar os números, porque eles seriam os instrumentos mais necessários à rude tarefa da sobrevivência. Por isso, foram os algarismos que primeiro haviam de surgir.
O zero, essa bola redonda, nasceu do vazio das mentes de então. É que, face à tarefa, se sentiram impotentes. Mas, um dia, um dos nossos antepassados levantou-se e clamou que era preciso trabalhar. Assim, com ele na vertical, o homem que era criativo, fez nascer o um, à sua imagem e semelhança. E foi um alívio.
Mas o outro grupo, invejoso, considerou que era preciso continuar a a inventar. E, quando ia sentar-se, lembrou-se que entre a posição de deitado e a de pé, havia outra em que apenas as costas se vergavam. Foi assim que nasceu o dois, um número de dorso arqueado.
Mas tudo isto era pouco para aqueles que criticavam tudo. E o três vai nascer, afinal, do grupo dos redondos, mais não sendo que dois vazios abertos e colocados em cima um do outro.
Logo o primeiro grupo começou a brincar com o pauzinho do um e foram-no cortando aos bocadinhos. Arrumaram os bocadinhos com imaginação e deram vida ao robusto quatro.
Os outros começaram a arredondar o três e a usar também o pauzinho do um, acabando por inventar o cinco.
A partir dessa altura, a luta tornou-se renhida entre os partidários das bolas e os partidários dos paus. Ficara incontroláveis e a multiplicar-se numa mistura das duas formas. E veio o seis e o sete. De um lado e do outro. Seguiu-se-lhes o oito que mais não é que o três fechado, sem qualquer porta para a liberdade. E logo alguém se lembrou de o deitar e inventar um novo conceito. Surge, assim, o infinito.
Sem descanso os redondos insistiam em abrir-se e surgiu o nove que no fundo é um seis que se pôs a descansar de pernas para o ar. Aí Deus interveio e disse basta, deixando-os entregues a si próprios.
Ninguem mais os parou numa miscenização numérica total. Vieram os dois digitos, os três digitos, enfim, a multiplicidade deles nunca mais deixou de se expandir...
Até que um dia alguém, sabendo que o espaço dos números era escasso, se lembrou de criar um harem numérico e, para o não ser invejado, criou as potências matemáticas. Assim já lhe era possível ter um património numérico enorme, sem que a maioria se apercebesse. A partir de então, os números ficaram à solta. Para todas as utilizações.
O Senhor que não gostou desta evolução, separou-os. E foi-os distribuindo pelo Universo. Hoje, não há sítio onde não estejam. Infelizmente, ainda nem todos os conhecem.

Helena

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Saudades...

O táxi chegou ao aeroporto da Portela mesmo em cima da hora. Detesto que isto me aconteça, pensou Sofia, enquanto corria para a fila, já reduzida, do check in. Quando se aproximou do balcão ouviu, nos altifalantes, a última chamada para o seu vôo.
Nova corrida para a sala de embarque e para o último bus que a levaria ao avião. Finalmente podia descansar. Já sentada, recordava a azáfama dos últimos dias e o risco, sempre iminente, de ter de cancelar a viagem, tantos os problemas que haviam surgido...
Mas agora preparava-se para uma semana na cidade luz. Talvez, quem sabe, até sejam dez dias, admitia. Voltar a Paris era retornar a casa. Aquela que, afinal, ia sentindo cada vez mais como sua.
Eram duas as suas vidas. A de cá, de Lisboa e a de lá. Aqui tinha a família e uma vida profissional ainda intensa. Mas em França tinha o seu coração, bons amigos e, sobretudo, liberdade para viver como queria e gostava. Sem espartilhos.
Há já bastante tempo que transportava em si duas mulheres, sem que isso lhe causasse qualquer incómodo. Em Portugal vivia de acordo com determinadas regras. Mais circunstanciais, até, do que próprias. Em Paris, ao contrário, normas era o que menos tinha. Vivia sem pré definições, era estrangeira, não tinha submissões.
O avião aterrou. Como sempre acontecia tinha um prazer especial em chegar sem avisar. Levava uma mala pequena, porque também aqui tinha tudo o que precisava.
O ritual era sempre o mesmo. Chegava a casa, deixava a maleta, dava um arranjo à cara e saía. Passeva junto ao Sena, tomava um café e ia sem destino aos sítios que guardava na memória . Aquilo que importava, na ocasião, era matar as saudades. Inspirava fundo como se aquele ar lhe limpasse os pulmões. E só voltava a casa quando a luz rosa do céu, lhe dizia que eram horas. Quase sempre por volta das oito.
Enquanto metia a chave à porta, a música de jazz vinda do interior anunciava que alguém estava à sua espera...

Helena

quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Não deixes para amanhã...

Marcela sempre fora assim. Poupada nos gestos e nas palavras. Não decidindo nada de imediato, na presunção de que daí a dias seria melhor. Na família chamavam-lhe "a adiada"!
Não era fácil ser sua amiga nem vencer a barreira das suas indecisões. Claro que ela sofria menos do que os outros, porque na esperança de que o dia seguinte, a semana seguinte, enfim, o mês seguinte oferecessem condições mais benéficas, também adiava dores e desilusões. Os que com ela conviviam diziam-lhe que, sendo assim, daquele geito, ela acabava igualmente por postergar as alegrias. Mas Marcela prosseguia o seu caminho satisfeita por poder dilatar todos os seus prazos.
Por várias vezes teve problemas na escola, depois no liceu e finalmente no trabalho. Todos lhe diziam que um dia ela ainda se iria arrepender do seu feitio, mas a nossa heroína pouco mudava no seu comportamento. "Só um susto grande vai fazer com que mude" diziam os amigos...
Estivemos muito tempo sem a ver. Sem sabermos nada dela. Havia quem dissesse que tinha um noivo, mas ninguém tinha a certeza.
Um dia numa daquelas reuniões de colegas de liceu, a Marcela apareceu. A horas. Foi uma festa à sua volta. Todas queríamos saber o que lhe tinha acontecido. Embora discreta lá contou, um pouco, a sua vida.
Começara a trabalhar cedo, logo que acabara o secundário. Decidira continuar a estudar em horário pós laboral. Tinha terminado o curso havia poucos meses.
Como seria de esperar, havia de apaixonar-se. E namorou o prazo tido por regulamentar. Até que, numa tarde foi pedida em casamento. E aí voltou-lhe a indecisão. Não estava segura acerca da vontade de se casar. Mas não queria perder o Pedro. Adiou, quanto poude, a decisão. Sem se aperceber, como sempre, das consequências dessa espera. Apesar de saber que estava a correr riscos, não conseguia decidir-se.
A certa altura o sexto sentido feminino deu-lhe aviso. E ela, intuindo que o tempo escasseava, e que o perigo já podia ser demasiado demasiado, resolveu aceitar a proposta feita.
Porém a reacção de Pedro, ao dizer-lhe que "agora já não havia pressa", não foi a esperada. Perturbada, perguntou-lhe o que é que ele queria dizer com aquela resposta.
Foi aí que percebeu que fora longe demais e que o seu tempo havia passado. É que não se deve deixar para amanhã o que pode ser feito hoje. Com efeito o noivo, entretanto, encontrara quem lhe deu a resposta no mesmo dia do pedido...

Helena

segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Guardado está o bocado...

Éramos muito Maria rapazes. Mas vinhamos todas da mesma escola primária, a da senhora D. Branquinha, a qual, por todos os meios à sua disposição, tentava fazer de nós umas meninas bem comportadas. Não o terá conseguido completamente, mas melhorou-nos muito.
Entrámos todas para o Liceu D. Felipa de Lencastre. Da dezena que constituía o nosso grupo, apenas a Manuela destoava. De facto, a beleza não a fadara. Em compensação era, de longe, a mais dotada. Tirava apontamentos das aulas, esclarecia as nossas dúvidas e alinhava sempre nas nossas pequenas loucuras. Era o que se podia dizer "um amor de pessoa"!
Fomos crescendo sempre juntas e juntas apanhámos o primeiro embate: a tuberculose da Judite. A lembrança que tenho desse tempo é terrível, porque a nossa amiga foi para um sanatório e as nossas famílias, com receio de contágios, evitavam que tivessemos qualquer contacto. Nem as cartas nos eram permitidas...
Um dia veio a notícia. A nossa amiga morrera. O facto marcou-nos a todas. Mas a Manuela, sempre ela, tomou a iniciativa de que junto ao corpo fosse uma carta escrita por todas nós. Ainda hoje lembro esse meu primeiro contacto com a morte, com tristeza e galhardia, por termos conseguido que a Judite levasse com ela um bocadinho de todas nós.
Crescemos. Ficámos janotas. Tivemos namoros. A Manuela melhorou, mas continuava pouco apreciada pela beleza. O que nela encantava era algo bem diferente, qualquer coisa que vinha de dentro, uma luz que nós não tinhamos.
Entradas na Faculdade, deparámos com um professor que "embeiçava"o pessoal feminino. Cada uma de nós estudava para ser a melhor e se poder tornar o centro das atenções do nosso guru. A Manuela não fazia qualquer esforço. Era naturalmente a melhor. E foi nela que o professor reparou. E a ele que ela, simplesmente, correspondeu. Sem dúvidas ou complexos.
Fomos, há dias, aos seus cinquenta anos de casada. Foi um gosto imenso revê-los. Manuela está hoje uma mulher interessante. À despedida disse-nos, a sorrir, que sempre acreditara que "guardado está o bocado para quem o há-de comer...". Gargalhámos com satisfação e concordámos com ela!

Helena