segunda-feira, 19 de janeiro de 2015

O vaso de crisântemos



Joana vivia num meio rural do interior do seu país. Corria quilómetros para aprender a ler, objectivo que já era considerado pelos seus pais como sendo mais do que a vida lhes tinha a eles permitido.
A sua curta existência tinha sido passada quase sem assentar em lugar fixo, porque o seu pai ia para onde houvesse trabalho de campo. Assim, com dez anitos já deveria ter conhecido mais de uma dúzia de terras. E era quase sempre quando começava a fazer amigos que tinha de se mudar. Foi, portanto, uma criança isolada que preferia os objectos às pessoas. Porque estes, sendo parcos, eram tudo o que possuía de seu.
Estava naquela terriola há seis meses e todas as noites olhava para o vaso de crisântemos que havia encontrado quando ali chegou, como se ele fosse a ampulheta do tempo que havia passado e, simultaneamente, daquele que lhe faltaria para dali sair. A planta, cuidada com todo o carinho, estava viçosa e era, de facto, a sua companhia. Todos os dias falava com ela os segredos que as outras crianças falavam com as amigas.
Um dia, ao chegar a casa, vinda da escola, o vaso havia desaparecido. Joana correu as redondezas para o tentar encontrar. Tudo debalde. Nunca soube o que lhe tinha acontecido. Apenas sabia que estava agora muito mais sozinha. A partir daí os dias corriam tristes e ninguém parecia conseguir compreender o que se passava com ela.
Os anos correram e os tempos melhoraram. Joana fez-se mulher. Deixou de rolar de terra em terra. Os pais acabaram, finalmente, por se poderem fixar ali. 
No seu quarto, junto à janela, está um vazo com crisântemos. Foi a primeira compra que fez, quando arranjou trabalho, apesar de, nessa altura, já contar com algumas amigas...

HSC

domingo, 23 de fevereiro de 2014

Sem vida própria

Há vidas que nunca o chegam a ser, porque são sempre vividas como se fossem as de outras pessoas. Era isto que Teresa, hoje com mais de meio século de vida, pensava enquanto arrumava umas cartas das filhas, agora a estudarem e a viverem no estrangeiro.
Como é que tudo lhe acontecera, quando aos vinte anos sonhava ter uma família e uma carreira? Não sabia responder, porque perdera a noção precisa do momento em que essa viragem se dera.
Lembrava-se bem de que quando a Isabel nascera ela sentira necessidade de ficar para sempre junto dela e do muito que lhe custou retornar ao trabalho, deixando-a nos braços da empregada até ao fim do dia. 
Quando a Sofia veio ao mundo, decorridos apenas dois anos sobre o primeiro parto, passou a trabalhar em casa para dar assistência às duas. A decisão foi, sobretudo, sua. A partir daí deixou, de facto, de ter a sua própria vida para se entregar à das crianças.
Uma terceira filha havia de aparecer, numa altura em que a carreira do Pedro, seu marido, tivera já uma boa progressão. Foi então que sentiu necessidade de voltar a trabalhar e partilhou essa carência com o homem com quem dividia a vida.
Mas, para sua surpresa, a reacção não foi a esperada. A posição que ele atingira na empresa impunha-lhe que estivesse presente numa série de eventos que não eram compatíveis com carreiras pessoais. 
Ficou triste mas compreendeu que o marido precisava do tempo dela. Foi assim que, aos poucos foi abdicando do seu próprio tempo. E agora, que nem o Pedro nem as filhas precisavam mais desse bem raro, Teresa sentia-se perdida, sem vida pessoal e sem compreender como durante trinta anos se contentara com viver apenas a vida dos seus!

Helena

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

DESENCONTROS

Marta teve durante toda a sua adolescência o trauma de ser filha de pais divorciados. Naquela época essa circunstância limitou-lhe os convívios e até as amizades. Era um tempo em que os casamentos se supunham para toda a vida.

Talvez fosse essa circunstância que a levasse a olhar a carreira como um substituto da família até à sua entrada na juventude e na Universidade. Aí, no meio desses homens e mulheres que batalhavam em pé de igualdade perante as mesmas dificuldades, ela compreendeu que nada a diferenciava dos restantes colegas.
Mas subsistia uma névoa que se manifestava no seu desejo de constituir uma família sólida que nada pudesse, jamais, abalar. Foi assim que veio o primeiro e único namoro com um jovem que havia de se transformar no seu marido.
Marta foi mãe de um casal e a sua vida passou a girar entre o emprego e os filhos. O seu parceiro ia dando sinais de que se sentia preterido, mas ela não lhes ligou grande importância. Até ao dia em que se deu conta de que a vida deles como casal havia mudado radicalmente. Nesse momento tentou inverter a marcha dos acontecimentos, mas era tarde. Miguel já havia preenchido o espaço que Marta havia deixado livre.
Seguiu-se o inevitável divórcio que a deixou com a responsabilidade maior de educar dois filhos e a sensação trágica de que perdera, por omissão, o homem da sua vida.
Os anos foram decorrendo e Marta estava decidida a ser uma pessoa diferente se voltasse a encontrar, de novo, alguém que valesse a pena. Esse dia chegou e com ele todo um processo de entrega da sua vida a esse novo amor.
Todavia a vida não se escreve por episódios e, ao fim de algum tempo, Marta percebeu que não era essa personagem que ela  dedicadamente encarnava, que o seu homem precisava. Isto era tão verdadeiro que se os seus dois maridos se juntassem para falar dela, nenhum a reconheceria.
Novo divórcio e uma constatação dolorosa. Quem o seu segundo marido queria, de facto, era a Marta do primeiro. E este teria sido, eventualmente, feliz com a Marta do segundo. A vida também é feita destes desencontros...


Helena 

segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013

Crianças do nosso tempo

- Vasco, o que é que queres ser quando fores grande? perguntou a professora
- Rico, respondeu
- Rico? Sim muito rico, para mandar nos outros e ninguém mandar em mim
- E tu Sérgio, o que queres ser quando fores grande?
- Mais rico que o Vasco, para ele não mandar em mim.
- Tu Mariana, o que vais ser?
- Mulher do Sérgio.
- Mulher do Sérgio, porquê?
- Para ser rica e eu mandar nele
- Vasco, o que fazem os teus Pais?
- Nada. Estão desempregados.
- E os teus, Sérgio?
- Trabalhavam para os pais do Vasco. Agora estão desempregados também.
- E os teus Mariana?
- São donos da empresa onde trabalhavam os pais do Vasco e do Sérgio
- Então vais ficar pobre se casares com o Sérgio.
- Não. Vou ficar rica porque ambos vão trabalhar para mim sem eu pagar
- Mas como?
- Um vai ser rei e o outro Primeiro Ministro.
- Mas quando e onde?
- Isso é que eu ainda não sei...

Helena

sábado, 9 de fevereiro de 2013

Cuide-se!

Era um fim de tarde de Outono, num Domingo. Ester vivia há tanto tempo sozinha, que já não distinguia os fins de semana dos dias úteis. Gostava de passear, ora no meio de multidões ora no meio de solitários jardins.
Assim, meteu-se a caminho da beira Tejo e andou até sentir que estava cansada. Um pouco mais à frente descortinou um banco virado para o rio e sentou-se. Não sabe quanto tempo terá estado assim. Provavelmente terá passado mesmo pelas brasas, admite. Voltou à realidade quando uma senhora de idade e boa aparência se sentou ao seu lado e lhe perguntou as horas. Respondeu e ficaram ambas caladas durante algum tempo.
No banco do lado direito um par de namorados tecia o seu rosário de sonhos. A certa altura, a senhora murmurou: 
- ainda não sabem nada da vida
- ainda há gente feliz
- dura pouco a felicidade...
A conversa ficou por aqui. Uma meia hora decorrida a senhora levantou-se e despediu-se. Já em pé exclamou, a sorrir, um amistoso "cuide-se".
Ester ficou ainda mais um pouco. Quando começou a escurecer voltou para casa, não sem antes entrar numa pastelaria e beber um café para re-aquecer. Quando ia pagar percebeu. O porta moedas, melhor o porta notas não estava na carteira. No seu lugar, numa espécie de contra partida em contrapartida encontrou um cartão que tinha impresso a frase " Foi um prazer. Cuide-se!".

Helena

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

O passado não volta...

- Não me abandones agora. Deixa-me ficar nos teus braços mais uns minutos. Aperta-me como antes, quando tínhamos dezasseis anos.
- Mas nós não temos mais dezasseis anos, Bárbara. Temos cinquenta e muita coisa passou por nós. Já não somos as mesmas pessoas que então éramos.
- Não é verdade, Tiago. Nós somos os mesmos. O mundo que nos rodeia é que é diferente. O teu coração, que eu ouço, bate como sempre bateu. Os teus braços envolvem-me do mesmo modo e os teus beijos têm o mesmo sabor da adolescência. Será que não sentes a mesma onda de calor que eu, nesta praia onde há tantos anos nos amávamos, neste céu que continua a nos envolver do mesmo modo?
Fica comigo, Tiago, nem que seja apenas por uma noite. Eu quero ficar contigo, relembrar outro tempo, que foi só nosso.
- O tempo que temos já não é mais nosso. O "nosso" é um possessivo que foi verdadeiro. Não é mais. Também a mim me sabia bem recordar a nossa história, descobrir em nós a rapariga e o rapaz que já fomos. Mas para quê?
- Fica comigo, Tiago. Só esta noite. Para que tenhamos uma lembrança viva, actual, do que ainda somos um para o outro.
- Não sei, Bárbara, se "ainda" é um termo que se aplique a nós...
- Se não ficares, Tiago, nunca saberás.

A noite ia longa naquela praia que foi, durante anos, o leito de amor dos dois adolescentes que ambos haviam sido. E onde acabaram por ficar, um no outro, aquela madrugada. 
Levantaram-se e caminharam mãos nas mãos à borda de água. Depois pararam, beijaram-se com sofreguidão e cada um caminhou para o seu carro. Para seguir a sua vida. Mas ambos tinham, agora, uma lembrança mais fresca, intensa, gostosa, um do outro. O que iriam fazer dela, no futuro, seria o segredo de cada um!

Helena


terça-feira, 22 de janeiro de 2013

Tango

É uma pessoa como deve ser, costumavam dizer dele. Dele, Artur. E tinham, de facto razão. Toda a sua vida fora enquadrada por espartilhos de boa compostura, Um bom filho, um bom estudante, um bom profissional, um bom marido e um bom pai. Quase se esquecera que havia gente que não era assim. Que só era competente numa ou duas áreas. E às vezes até nem isso...
Mas um dia apareceu-lhe uma mulher que todos diziam ser "assanhada". Nem ele bem sabia o que isso queria dizer até a ter conhecido e ter ficado ali, especado a olhar para ela. Especado é o termo porque não conseguiu sair do local em que se encontrava nem se lhe ouviu o vago "prazer em conhece-la" que tentou pronunciar. 
Ao invés, ela nem quase olhou para ele, seduzida que ficou por um argentino que, destacando-se no meio de um salão cheio de gente, pegou nela e de modo inesperado, a levou pelos ares ao som do tango que se fazia ouvir. De tal modo foi surpreendente o gesto, que todos pararam de conversar, lhes deram espaço e ficaram a ver o par deslizar.
Artur teve um impulso louco e, fazendo sinal à orquestra para continuarem a tocar, com um movimento brusco, roubou Penelope dos braços do seu par, tomou-a nos seus e agarrando-a como se fosse sua, levou-ao ar e, competiu com ganho, no tango que se seguiu, corpos colados, pernas em hélice, respiração ofegante, enfim o que se costuma imaginar do "dois em um"... 
Nem ele sabe explicar o que lhe aconteceu. No último acorde, inspiração de um e expiração de outro confundidas, lábios quase unidos, Penelope pára, dá-lhe um estalo e afasta-se a passos largos - deixando-o sozinho no meio da sala -, para se dirigir a Enrique, a quem beijou cheia de sensualidade e olhando Artur com altivez, saíu. Este continuava no mesmo sítio, hirto, olhar estranho, sem se mover.
A musica voltou a fazer-se ouvir, as pessoas voltaram a conversar. Só Artur não conseguia sair de onde estava. Até que a sua mulher, Cândida, pegou nele e começou a dançar. Mas aí, já ninguém se voltou...

Helena