segunda-feira, 19 de julho de 2010

A brasileira


Nunca se sabe como se acaba. Nem tão pouco como se começa, porque, dizem os entendidos, não há memória factual com menos de três anos.
A Julinha era uma destas pessoas de fraca memória. Esquecia o mal que lhe faziam com a naturalidade com que se lembrava das alegrias que tinha tido. Era uma santa, diziam. E de facto, ao Domingo, era vê-la com o seu melhor traje, ir para a comunhão dada pelo senhor padre Eurico. Tinha quase trinta anos e de namoro nem a sombra...
Mas, um dia tornou à terra o Francisco, que era embarcadiço e de quem se contavam muitos amores deixados pelas terras onde o barco aportava. De casório, nem palavra.
Pois foi a Julinha que o encantou, apesar de ser enfermiça, como ele próprio dizia. E lá se fez o arranjo entre os dois com a benção do padre Eurico.
Os anos passaram, as partidas e chegadas continuaram e os filhos não apareceram. Até que o nosso homem deixou-se de barcos e quedou-se pela terrinha, hoje quase transformada numa sucursal brasileira nas gentes, nos usos e nos costumes.
E, porque a saúde do casal não andava em grande forma, os amigos convenceram-nos a contratar uma empregada. Foi o padre Eurico que a recomendou. E a Neusa, nascida no Mato Grosso, lá ficou a tratar dos velhotes. Primeiro umas horas. Depois o dia inteiro. Finalmente a dormir.
"É um amor", dizia o casal. "Ela anda metida com o ti Xico", diziam as más línguas.
Hoje vivem os três de cama e pucarinha. A Julinha espevitou. O Francisco está outro homem. E o pároco, arredado do pecado, está satisfeito com a ajuda que deu à Neusa. Esta, indiferente aos rumores, já conseguiu a proeza de levar os dois ao Brasil, para conhecerem a família.
Não há dúvida que as brasileiras têm um pendor para revolucionar os nossos costumes. E há até quem, lá na terra, já fale em copiar...

Helena

domingo, 11 de julho de 2010

Uma vida especial!


Na escola ninguém dava por ela. Boa aluna, discreta, fugia dos recreios para ficar a estudar. Os colegas tentavam arreliá-la e davam-lhe alcunhas. Nada a demovia. Na biblioteca ou num canto de um corredor, Joana estava sempre agarrada a um livro ou a escrever num caderno.
Assim levou a escola primária e depois o liceu. Entre os excelentes.
Nada se sabia da família, dos seus gostos ou desgostos. Parecia que os não tinha. E assim chegou à Universidade onde entrou de souquettes. Também aí se começou a fazer notar, porque tinha sempre apontamentos que complementavam os livros por onde todos estudavam. No fim do primeiro ano era a melhor. Foi quando se soube que tinha uma bolsa de estudo!
No segundo ano ninguém a reconheceu. Aprumada, saltos altos, cara maquilhada, passara de crisálida a borboleta. Os rapazes apareceram e os convites também. Nada perturbou o seu caminho. Terminou, uma vez mais entre os melhores. E, sem qualquer dificuldade, encontrou o seu trabalho. E também o seu amor que lhe havia de proporcionar a experiência de ser mãe.
De filhos igualmente especiais que, na sua área, são imensamente respeitados.
Morreu há uma semana, com 97 anos. Rodeada de todos os seus.
Há vidas assim. Especiais!

Helena


domingo, 4 de julho de 2010

Os outros



Penso muitas vezes nas "estórias" das pessoas que me rodeiam e eu não conheço. Quando os meus filhos eram adolescentes e iamos jantar ou almoçar fora, tinhamos uma brincadeira que era olhar para uma determinada mesa e dar-mo-nos cinco minutos, após os quais cada um de nós contava a novela dos membros da referida mesa. Era muito curioso ver como diferiam os "olhares" sobre a mesma realidade.
O que também dizia muito não só de nós próprios, como da nossa forma de encarar os outros, para além de nos pôr a falar de realidades distintas. A minha mãe fazia muito esta experiência comigo. Quando eu era mais crescida pelos meus dezoito ou vinte anos, acabavamos sempre numa imensa risada por causa dos guiões que ambas inventávamos.
No fundo, acabei por repetir com os meus aquilo que já os meus pais haviam feito comigo. Hoje lembrei-me disto a caminho do aeroporto, quando fui bucar o meu filho mais novo, que tinha ido visitar o mais velho. É que, por uns tempos largos, não voltaremos a estar os três a fazer destas estórias...

Helena